quinta-feira, 31 de maio de 2007

Bayrou e o MoDem sobre a Constituição Europeia e o Cristianismo


http://www.bayrou.fr/propositions/religions.html

Que as raízes da Europa sejam cristãs, basta abrir um livro de História para o avaliar. Mas a Europa não é feita apenas de cristianismo. Atenas deixou-nos a razão em herança. Roma - a Roma dos deuses - deixou-nos o gosto pela administração e o direito. Os judeus trouxeram o Livro, a sua memória, o seu silêncio, o seu sofrimento, sofrimento muitas vezes sob a férrea lei da Igreja. O Islão guerreou ao longo do tempo, penetrou profundamente na nossa História, ameaçando, dominando e depois retirando-se, não sem deixar a sua marca na nossa cultura colectiva. E a base da Europa é também uma base de contestação do cristianismo. Voltaire é Europa, e Marx é Europa, tanto quanto Kant é Europa... A Europa são todas estas descendências, razão pela qual não podemos inscrever na sua Constituição uma referência a uma religião particular. Pois uma Constituição é o texto fundamental que a todos permite viver com todos.

Será assim tão difícil compreender isto?

Ann Coulter



Ann Coulter, para quem não a conhece, é o exemplo acabado da idiotice de Direita em geral, e da Direita americana em particular. Um dos seus desportos favoritos é chamar gay a políticos de quem não goste - Edwards ou Clinton.
Neste filme, aquela tonta é arrasada.
A ver.

Ainda o sistema de financiamento da educação


Foi-me dito que no sistema que foi referido anteriormente não caberia a ponderação dos resultados nem da proveniência dos alunos, sendo assim um sistema mais igualitário.

Bom, não é necessariamente igualitário; ou podemos considerar de facto igualitário - no sentido em que trata os desiguais como se fossem iguais. A segregação social continuará (dado que as escolas terão discricionaridade na escolha dos alunos, e os melhores colégios não quererão perder os seus cliente habituais aceitando a racaille), com a diferença de agora o Estado aumentar a sua comparticipação das escolas privadas de 115 para 275 euros por aluno.

Por outro lado, o premiar da concorrência entre escolas (e necessariamente entre alunos) fica também algo debilitada: em Setúbal, onde cresci, há claramente uma escola secundária superior a todas as outras (no ranking dos exames nacionais é normalmente a melhor do distrito), mas não é necessariamente a mais escolhida. Aliás, há pessoas que fogem de lá pelo ambiente mais ou menos elitista e por os professores serem mais rígidos, dando piores notas aos alunos (ou seja, são mais exigentes). No limite, estamos a admitir que esta escola poderia fechar ou pelo menos receber menos fundos por não ser suficientemente laxista. Parece-me pouco convincente. Desta forma, no fim tudo poder-se-ía resumir a guerras de marketing entre escolas, o que seria duplamente negativo: por um lado, não haveria qualquer incentivo para a excelência; por outro, uma quantidade crescente de fundos seria desviada do core business, por assim dizer, para campanhas de angariação de novos alunos.

Assim, de facto, não me convencem. Creio já ter dito isto, mas fica a ideia: o melhor argumento a favor deste sistema é premiar a excelência e a única forma de minimizar o carácter esmagador da concorrência é ponderar o meio social de origem. Se esse sistema não o fizer (e, pelos vistos, não o faz), então, mal por mal, ficamos com o que temos.

Ponderar um sistema ponderado de financiamento por aluno


Na sequência do debate tido no blog do MLS, aqui e aqui e porque, ao contrário do que muitas das pessoas que me conhecem pensam, eu não sou assim tão teimoso, coloquei a hipótese de implementação de um sistema desse tipo ser viável.

No entanto, mantenho que o argumento da liberdade de escolha é, para mim, disparatado. A única coisa que pode sustentar uma tal opção é a possibilidade de ser mais proveitoso - produzir melhores resultados. Simultaneamente e para o sistema não ser socialmente iníquo, tem de ponderar as variáveis ambientais (meio social de proveniência dos alunos).

De mais a mais, a implementação de um tal sistema teria de garantir que não iria haver escolas a falir por falta de recursos. Por fim, provavelmente as escolas públicas estatais teriam de se tornar todas escolas públicas sociais (geridas por professores e encarregados de educação, possivelmente) dado que a separação entre públicas e privadas deixaria de fazer sentido.

Assim e após reflectir no orçamento do ME e de fazer uma projecção (naturalmente muito artesanal, mas apenas para servir de experiência e que pode ser consultada aqui), a ideia não me parece totalmente descabida.
Como já disse, para mim a ponderação dos rendimentos é muito relevante, não tanto por uma questão de distribuição (que à partida o sistema fiscal já deve fazer) mas sobretudo porque o meio social é a meu ver (repito - o ranking das escolas prova-o de forma gritante) determinante nos resultados dos alunos. Assim, não entendo ser justo que uma escola com muito bons alunos mas todos de classes altas, mereça ser considerada como uma escola excelente e premiada como tal - não fez mais do que a sua obrigação. Pelo contrário, escolas com alunos cujos pais sejam pobres e/ou com baixos níveis de escolaridade e que consiga resultados aceitáveis realizou um trabalho bem mais louvável.

Resta no entanto a questão religiosa (pois é, a religião é mesmo uma chatice): a maior parte dos colégios (e naturalmente a maior parte dos melhores colégios) são confessionais.
Como é que se pretende resolver essa questão? Como é que, após um longo discurso defendendo o financiamento por aluno, chegamos ao fim e dizemos - "bom, mas a maior parte dos colégios estão excluídos por serem confessionais", dado que o Estado, sendo laico, não pode (não deve) financiar a maior parte das escolas privadas hoje existentes?

Esta é uma pedra na engrenagem da argumentação que foi utilizada. No entanto, se o sistema a implementar for de facto um sistema ponderado, envolvendo capitação de rendimentos do agregado familiar, possivelmente a escolaridade dos encarregados de educação e os resultados dos alunos em exames nacionais para cada grau de ensino, parece-me que é um sistema que pode ter pernas para andar - estimula a concorrência, promove a excelência e garante equidade social.

quarta-feira, 30 de maio de 2007

No deserto da Margem Sul...




Foi inaugurado um novo metro, apesar de a intensidade do tráfego não justificar tal investimento.

Por que sou contra o Cheque-Ensino





Esta questão, reconheço, é algo complexa; é, também - aliás, sobretudo - uma questão que costuma ser tratada de forma bastante emotiva. De um lado, há quem afirme que a escola pública é inevitavelmente má; de outro, quem afirme que os privados é que são inevitavelmente maus.




Não quero ir por aí. Quero dividir a minha justificação em duas posições: uma de princípio e outra prática. Faço-o pois, apesar de (ou, mais provavelmente, precisamente por) ter uma posição ética (enquanto moralidade racionalmente fundamentada e não meramente moralista) tenho o dever de submeter essas considerações à confrontação com a praticabilidade ou não da minha posição. Ou seja, eu tenho de ver se a minha posição, para além de convictamente ética, é responsavelmente ética.


No que respeita à convicção, o argumento normalmente utilizado para defender o cheque-ensino parece-me terrivelmente falacioso. A questão não está na liberdade de escolha - essa liberdade já existe. Não há ninguém que seja impedido pelo Estado de frequentar uma escola privada. Este argumento faz-me lembrar a discussão sobre o estado laico. Muitos crentes afirmam-se agredidos na sua crença por o Estado ser laico, ou seja, por o Estado tratar todos os cidadãos como iguais, sem hierarquizar nem conceder privilégios em função da nossa adesão a uma determinada ideologia (neste caso, religiosa). Parece-me uma posição insustentável na perspectiva dos direitos cívicos. Ora, na educação temos o mesmo problema. Será função do Estado então reconhecer o direito aos indivíduos (e em concreto, a uma fatia apenas deles) de ter algo mais do que o que o Estado já fornece a todos os cidadãos por igual?


E aqui chego à questão que para mim é fulcral: qual a função do Estado? Para mim a função do Estado não é zelar pela minha felicidade, subsidiar o meu desejo de comprar um Lamborghini. A função do Estado também não é a de subsidiar o funcionamento de empresas privadas. O Estado Social, segundo o meu entendimento, deve ser um Estado de Justiça - um Estado que dá um mínimo igual para cada um. Não pode ser um Estado de Bem-Estar, preocupado com o que eu posso desejar ou deixar de desejar.


Gostaria de abrir um parêntesis aqui, apenas para dizer que, apesar do meu discurso, eu não acredito que as escolas privadas sejam realmente melhores que as públicas - o que é determinante não são os meios materiais nem sequer os professores - embora se as condições e os professores forem bons, os resultados naturalmente reflictam essa realidade - mas os alunos. A minha experiência pessoal e os dados que são publicados anualmente sobre os resultados dos exames nacionais provam-no de forma gritante. Quanto melhor o meio social dos alunos, melhores os resultados. Quem tiver dúvidas, compare os resultados das escolas públicas dos melhores bairros da Grande Lisboa e os resultados dos colégios do interior.


No que respeita à responsabilidade, vamos a uma questão muito pragmática: dinheiro. Abaixo coloco as ligações com os documentos que sustentam a minha análise. Atenção, que os números apresentados são algo grosseiros, mas não me interessa ir aos cêntimos, mas apenas ver tendências. No topo do post está o quadro com os dados mais relevantes: os números de alunos nos dois sectores (público e privado) e os gastos do Estado com cada um deles. Excluí alguns gastos como a Acção Social, a Educação de Adultos ou os gastos com a Administração, seja porque dizem respeito a todo o ensino, seja porque se referem a situações muito específicas.
O resultado é surpreendente: apesar de toda a argumentação que existe em torno do cheque-ensino, afinal o Estado ajuda a pagar o ensino privado com valores que proporcionalmente rondam os 40% dos gastos com os alunos do sector público. Ora, se a isto somarmos as propinas - não propriamente baixas - das escolas privadas, eu pergunto-me: onde é que os defensores do cheque-ensino pretendem ir buscar dinheiro para pagar o luxo de quem quer ter o filho num colégio? Vão cobrar mais impostos? Vão aumentar a dívida pública? Vão fechar escolas públicas, despedir professores, cortar nos investimentos e gastos de manutenção de instalações para poupar algum dinheiro para dar o subsídio às classes média-alta e alta?


Sokolovsky, a persistência do Czarismo e a Estratégia Soviética


Na sequência da visita de Sócrates à Rússia, a questão dos mísseis americanos na Polónia e na República Checa regressou. Acho perfeitamente idiota e desnecessário e das duas uma: ou os americanos já esqueceram tudo o que sabiam a respeito dos russos, ou estão mesmo a provocá-los.



1- A questão central na análise de Sokolovsky, e bem assim na análise de toda a estratégia soviética, é ver a articulação existente entre o regime Czarista e a História do Estado Russo e o regime Soviético. De facto, nota-se uma continuidade não só no tipo de regime político, no seu funcionamento interno, como, para o que interessa aqui, na postura do Estado em termos de política externa e de defesa. Assim, e para o comentário de Sokolovsky, seguir-se-á o seguinte esquema: descrição das condicionantes históricas, geográficas, culturais e políticas; nascimento da URSS e primeiras definições estratégicas do novo estado; análise do autor em causa; conclusões.


2- Para explicar a importância dos condicionalismos de diverso tipo que formataram em grande medida as definições estratégicas soviéticas é importante ter em conta o testemunho dado por Kennan, profundo conhecedor do povo e do Estado russo, e foi um dos primeiros ou, provavelmente, o primeiro ocidental a aperceber-se da continuidade entre o czarismo e o regime soviético e a persistência de comportamentos “russos” na política externa da URSS. Antes de Kennan, só autores como Trotski (em Resultados e Perspectivas, por exemplo) ou Rosa Luxemburgo se aperceberam plenamente de tal facto. N’ O Longo Telegrama de Moscovo Kennan explica que a URSS vive, no pós-II Guerra Mundial, numa visão de cerco capitalista antagonístico que não possibilita uma coexistência pacífica. Por esta razão, precisa de criar sólidas estruturas de segurança. Posteriormente, o autor sublinha que se trata não tanto de um comportamento soviético quanto de um instinto russo, o instinto de um povo agrícola que vive em terras planas na vizinhança de povos nómadas e que depois entra em contacto com o Ocidente e receia o seu avanço civilizacional e tecnológico. Este instinto, Kennan atribui-o mais aos governantes (quaisquer que eles sejam) que ao povo. Consequentemente, há uma paranóia securitária e expansionista, que é histórica e não de regime, em que o sentimento de insegurança é tal que o desejo é de destruição e esmagamento completo dos adversários, não havendo uma cultura de compromisso.

Convém agora explicitar melhor o que se acaba de afirmar. O Estado Russo tem uma História de expansão permanente. Originário da taiga do Norte, de solos pobres e clima extremamente rigoroso, o povo russo teve, nessa fase, como única defesa a floresta. Ao procurar melhores solos e um clima mais favorável, expandiu o seu território para sul, sudoeste e sudeste, para a estepe. Como defesas dos colonos passaram a haver apenas o rigor do clima, a extensão do território e o poder militar crescente. Nesse sentido, o Estado Russo teve sempre como sua principal e quase única preocupação a sua própria sobrevivência física. A existência de duas passagens, uma em toda a extensão da fronteira oeste, entre o Báltico e o Mar Negro, e outra a oriente, entre o sul dos Urais e o Mar Cáspio, foram servindo tanto para invasões estrangeiras (teutões, lituanos, alemães, cossacos, mongóis, ao longo de toda a História russa) como para a própria expansão russa, dependendo da força relativa de cada uma das partes em cada momento. A fragilidade das fronteiras, as necessidades económicas domésticas, as preocupações de segurança, a inexistência de potências fronteiriças amigáveis acabaram por fazer uma História de guerras permanentes. E, de tal forma isto é verdade, que a própria ideia de expansão é entendida como uma forma defesa face ao inimigo exterior. Foi assim que o Estado se expandiu para a estepe para proteger o território de origem, e para todo ou quase todo o Heartland eurasiático, para proteger a estepe. Daqui se extrai a conclusão óbvia que há uma lógica de expansão quase ilimitada: conquistar mais para garantir a segurança do já conquistado. Simultaneamente, e para evitar que determinado inimigo possa regressar fortalecido, torna-se premente que a sua derrota seja rápida e total.

Um Estado que se desenvolve nestas circunstâncias tem características peculiares. A Rússia (à semelhança, por exemplo, da China) era uma Burocracia Imperial Asiática, um Estado patrimonialista, em que um autocrata encabeça e comanda um aparelho administrativo centralizador que consegue impor o domínio absoluto do imperador sobre toda a extensão do seu território. Este aparelho administrativo é extremamente eficaz na extracção de recursos da sociedade, sendo esses recursos dispendidos essencialmente no aparelho militar e burocrático, o que tem efeitos multiplicadores ao fortalecer o Estado não só a nível externo (face a inimigos e invasores) como a nível interno (adquirindo mais e mais eficácia na extracção de recursos e mantendo níveis elevadíssimos de repressão social).

No entanto, parecerá abusivo atribuir a totalidade da estratégia soviética a condicionantes exteriores à própria fundação do regime. Escapando ao determinismo geográfico, é importante também salientar o determinismo histórico, já para não falar do próprio nascimento do regime e dos seus primeiros anos. Às características do regime soviético não terão sido estranhos a repressão e a luta interna, causada e causadora de sentimentos de paranóia e perseguição sistemática entre a elite governante, com a guerra civil e as purgas estalinistas. Por outro lado, a própria dialéctica marxista parece, de forma perversa, adaptar-se à lógica de rejeição pura do que é estático (e, daí, um reforço do expansionismo). Mais ainda, a teleologia do materialismo histórico aponta para uma vitória absoluta, final e decisiva de um só modelo de sociedade, um só sistema social. Assim, reforça-se também o desejo instintivo de esmagamento absoluto do oponente. Uma interpretação peculiar do marxismo e a herança histórica do czarismo fundem-se na União Soviética e na sua elite. O instinto russo compele à permanente preparação da guerra pela segurança em tempo de paz; a ideologia inspira a luta contra todos os inimigos do sistema social que no fim da História vencerá.


3- Desta forma, a doutrina militar soviética absorveu a ofensiva como eixo estratégico vital. Os primeiros estrategas soviéticos fizeram como que a ponte entre o passado e o presente, entre o czarismo e o regime soviético; assim sendo, entre esses teóricos militares contavam-se tanto oficiais veteranos do exército imperial como jovens revolucionários. Uns e outros formularam os conceitos que predominariam na estratégia soviética. Entre tais conceitos estão o combate de grande profundidade, a primazia da ofensiva e a mobilidade e a manobrabilidade. A obra Estratégia de 1927 de Svechin dá um salto qualitativo enorme. Torna-se na única grande obra soviética do estilo durante muito tempo (será preciso esperar por Sokolovsky, que será influenciado também por Svechin), e por isso no manual de estratégia do regime. Na sua obra, o autor analisa a complementaridade ou a oposição entre binómios como ofensiva/defensiva, guerra de movimento/guerra de posição, guerra de destruição/guerra de desgaste. Svechin faz a apologia de uma articulação entre as guerras de desgaste, de destruição e de movimento. Qualquer guerra terá de ser marcada pela rapidez e mobilidade; a todo o custo se deve evitar que o oponente consiga firmar posições numa frente sólida, pelo que a guerra deverá ser de movimento. O inimigo deverá sofrer múltiplos ataques, sucessivos e coordenados, marcados pela rapidez e pelo seu carácter maciço, em operações de desgaste que no entanto não são suficientes porquanto não cumprem o objectivo primordial: a destruição completa do inimigo. Nesse sentido, há uma fase final, a fase decisiva na qual se cumpre esse objectivo. Após a publicação de Estratégia, o endurecimento das purgas estalinistas levará à censura de muitas obras, pelo que durante bastante tempo pouco mais se produziu em termos de teoria militar.

4- Na década de 1960 a doutrina Kruchtchev impulsiona novamente a estratégia soviética. É Sokolovsky, através de Estratégia Militar, que realiza o trabalho de teorização da doutrina. Esta afirma-se defensiva, debalde o facto de ser objectivamente ofensiva, sem excluir acções preventivas. Sokolovsky faz assim regressar o trabalho dos primeiros teóricos, cujos princípios estratégicos são adaptados à utilização maciça do armamento nuclear. Sendo a trave-mestra da estratégia soviética a ofensiva, o ataque (mesmo quando se trata de uma resposta a outra ofensiva), é preocupação fundamental de Sokolovsky levar a guerra para dentro do território do inimigo, aí o destruindo por completo. Em consequência desta formulação, o estratega soviético advoga a utilização de um ataque nuclear inicial maciço. Para além disso, a defesa propriamente dita e o contra-ataque deverão ser levados a cabo por unidades extremamente móveis. Sokolovsky defendia que a guerra do futuro (que seria uma guerra mundial nuclear entre os dois blocos que representavam sistemas sociais distintos e opostos) seria substancialmente diferente das anteriores, cujos objectivos se cingiam ao enfraquecimento e derrota das forças armadas inimigas e à conquista de regiões ou centros de poder dos inimigos. Nessas guerras, a inexistência de meios estratégicos de destruição obrigava ao contacto directo entre os beligerantes. Mesmo na II Guerra Mundial, na qual, com o objectivo de desorganizar o interior do inimigo, se recorreu ao bombardeamento aéreo, esta estratégia não surtiu efeitos relevantes no resultado do conflito. Para além disso, os objectivos do conflito mantinham-se os mesmos de sempre. Pelo contrário, na guerra do futuro o armamento estratégico de destruição maciça (nomeadamente o armamento nuclear) ocuparia o lugar central. Os beligerantes usariam os mais eficazes meios militares com o objectivo de alcançar a aniquilação ou capitulação do inimigo no mais curto espaço de tempo possível.

A estratégia militar soviética delineada por Sokolovsky aponta para uma clara conjugação entre a derrota das forças armadas inimigas e a destruição completa do inimigo no seu próprio território, devendo esses objectivos ser alcançados em simultâneo. É o armamento nuclear que permite resolver o impasse criado por este duplo objectivo. Vencer no menor espaço de tempo possível ao mesmo tempo infligindo ao oponente uma derrota tal que todos os fundamentos do seu poder (sejam eles políticos, económicos ou militares) desapareçam, em qualquer parte do Mundo onde esses fundamentos existam (seja no coração do território nacional seja em bases espalhadas pelo Mundo) só é possível por intermédio do armamento estratégico de longo alcance. Pelo que se percebe do agora exposto, há uma limitação da guerra ao mais pequeno espaço de tempo, e uma expansão da guerra a todo o espaço humanizado, incluindo, por exemplo, linhas de comunicação por satélite. No entanto, convém explicitar que (e sem dúvida aqui está a influência do antigo regime) o tempo de paz deve servir para preparar a guerra, que será inevitável; assim, exige-se uma mobilização permanente tanto dos meios e recursos militares, como da população civil, por forma a que o máximo de forças estejam preparadas para serem utilizadas no próprio deflagrar da guerra; os momentos iniciais da guerra são os mais violentos, sendo fulcrais para todo o seu desenvolvimento. É a capacidade de resposta nestes momentos que vai determinar a sobrevivência do país após o primeiro embate, garantindo a não-destruição do país e da população. Inversamente, a devastação infligida no inimigo criará vastas zonas desertas, nas quais forças altamente mecanizadas lançarão ofensivas caracterizadas pela mobilidade, impedindo que o oponente crie linhas de defesa consolidada.

Importante é também ver a concepção de Sokolovsky a respeito dos recursos humanos no plano militar. Com base em Lenine, sustenta o argumento segundo o qual a URSS tem clara vantagem sobre os países do bloco capitalista, o que se deve ao facto de os exércitos da guerra do futuro (e, na verdade, os exércitos que foram usados na II Guerra Mundial e que as principais potências detêm no início da década de 1960) são marcados pelo seu esmagador número. São forças armadas de milhões de efectivos, o que também se explica pelo alargamento do campo de batalha quase até ao infinito. A consequência que isto tem, aos olhos de Sokolovsky, insere-se na análise marxista-leninista. Ao passo que no bloco capitalista o desaparecimento dos exércitos de mercenários provocaria um agudizar das contradições de classe e uma consciencialização da existência dessas contradições em camadas cada vez maiores da população, resultando num enfraquecimento dos exércitos ocidentais. Pelo contrário, no bloco socialista, a comunhão de interesses entre povo e governo daria mais alento ao povo e aos militares.
Por outro lado, também o tipo de armamento que passa a ser central, o armamento nuclear, exige alterações substanciais do ponto de vista quantitativo; implica grandes perdas, elevado número de baixas, e por isso mesmo forças armadas muito numerosas, bem como um número muito elevado de reservistas, um número que permita facilmente restabelecer os efectivos totais das forças armadas. Mas também alterações qualitativas estão em causa. A introdução de material militar que exige elevadas capacidades técnico-científicas requer que o pessoal militar seja cada vez mais especializado e cada vez mais qualificado. Nesse sentido, o peso relativo de engenheiros e técnicos no seio das forças armadas conheceu um crescimento contínuo. Simultaneamente, a percepção que o novo material bélico é extremamente destrutivo levou à compreensão da necessidade de o pessoal médico crescer também ele, para minorar os efeitos de uma guerra nuclear, permitindo a sobrevivência da população civil e dos efectivos militares. Ora, ter forças armadas numerosas e com elevado desenvolvimento técnico não pode depender exclusivamente da dimensão demográfica de um país. Desta forma, Sokolovsky aponta ainda como requisitos fundamentais uma pluralidade de factores, que incluem a natureza do sistema socio-político, o seu nível de desenvolvimento e a sua capacidade de organização interna. A prosperidade, a cultura, as capacidades técnicas e as condições físicas da população, bem como o seu alento moral e a comunhão de interesses entre civis, militares e políticos, enquadrados por forte sentido de organização e disciplina amalgamam-se num todo que constitui uma vantagem para o bloco socialista. No entanto, e apesar de Sokolovsky afirmar – porventura mais por obrigação política que por convicção própria – que a vitória sobre o bloco capitalista antagonizador do mundo socialista seria o fim inevitável da guerra moderna, o bloco de Leste teria de ter em conta um factor determinante. Um pré-requisito para a vitória militar na guerra moderna é a capacidade de a economia de um país garantir às forças armadas o apetrechamento em material bélico que garanta a sua constante superioridade, tanto em termos quantitativos como qualitativos, face ao inimigo. Desta forma, há uma triangulação entre desenvolvimento económico, investigação técnico-científica e poder militar, sendo que o objectivo final é sempre o reforço do poder militar.

5- Do que foi exposto, podemos extrair algumas conclusões a respeito da estratégia soviética, em grande parte resultado do passado czarista da Rússia. A política externa soviética caracteriza-se por uma busca de conciliação entre máximos e mínimos, expresso tanto no que respeita à questão da eficácia (máximos ganhos com mínimos riscos) como, em consequência dessa concepção e no seguimento que os estrategas soviéticos, com Sokolovsky à cabeça, dão a essa questão, na expansão da guerra aos máximos limites geográficos e mínimos limites temporais. É sempre uma busca do absoluto que não admite a estabilidade de poderes, um movimento dialéctico rumo à segurança absoluta. A inexistência de fronteiras nem limites para a ambição securitária é uma característica comum das burocracias czarista e soviética, uma ambição que sendo desmedida no espaço, não o é no tempo: a precipitação não é uma nota determinante da classe dirigente. O combate final deverá ocorrer apenas quando o país estiver pronto para derrotar o inimigo, e derrotá-lo de forma total. Para esta derrota absoluta, o Estado tem de construir um aparelho forte, que faça canalizar todos os esforços da sociedade, todos os seus recursos, para a consolidação do poder estatal. Esta consolidação tem em vista garantir que o Estado, uma vez agredido, esteja em condições de, através da supremacia militar, tomar a iniciativa e mantê-la do seu lado através de ofensivas rápidas e maciças, devendo sempre haver um momento decisivo (que variou – Sokolovsky defendia ser o momento inicial, mas outros opuseram-se, afirmando que tal só deveria ocorrer a posteriori) no qual o oponente seja totalmente esmagado. Em todo o caso, a ofensiva é determinante na estratégia russo-soviética: é ela que garante que a guerra seja feita fora do território russo, salvaguardando-o da destruição bélica e permitindo a conquista de mais territórios que formarão nova cintura de defesa do território original. Esta primazia da ofensiva perduraria até aos nossos dias. E, mesmo durante os períodos de détente, na década de 1970 e no período final da URSS, em que se buscava assegurar o Ocidente das intenções puramente defensivas da estratégia soviética, o raciocínio permanecia o mesmo que perpassa em toda a História russa: durante a paz, preparar a guerra; fazer a guerra, para obter paz.

terça-feira, 29 de maio de 2007

Retorno a Voltaire - a piedade cristã


Bom, está claro que gosto de Voltaire. Estive com dúvidas se colocaria ou não esta passagem, mas resolvi colocá-la e até traduzi-la, para que o facto de o texto estar na língua mais odiada dos nossos tempos (está na moda ser-se francófobo, não há asno armado em galifão que não diga mal da França) não seja desculpa para que esta bela passagem seja por todos lida:


Um dos mais espantosos exemplos de fanatismo foi o de uma pequena seita na Dinamarca, cujo princípio era o melhor do mundo. Visavam essas gentes dar boa-aventurança eterna aos seus irmãos; no entanto, as consequências de tal princípio foram singulares. Sabiam que todas as crianças que morressem sem o baptismo seriam condenadas e que aquelas que tivessem a sorte de morrer imediatamente após terem recebido o baptismo gozam da glória eterna: foram então degolar todos os meninos e meninas recentemente baptizados que puderam encontrar; era sem dúvida fazer-lhes o maior bem possível: eles eram preservados simultaneamente do pecado, das misérias da vida e do inferno; eram enviados infalivelmente para o céu.

Voltaire, Traité sur la Tolérance, Capítulo XVIII


Actualmente - e de formas que seria expectável já não serem admissíveis - os crentes (das mais variadas religiões - não é um problema exclusivo dos muçulmanos) estão a recuperar um fervor que os leva a fazerem coisas inacreditáveis em nome da sua fé. São sinceros e coerentes, é um facto. Mas isso não faz deles pessoas melhores, nem menos perigosas.

A Sociedade Autogerida (ainda Rosanvallon)


Sair da dicotomia estatização/privatização é o fundamental da proposta de Rosanvallon. Não se trata de eliminar o público, mas de permitir que o público seja mais que simplesmente o estado[1]. Quais os grandes problemas levantados por esta tensão? Fundamentalmente dois. Um primeiro é sobretudo um sintoma: o descrédito e o desespero, mais ou menos sentido e mais ou menos assumido nas sociedades regidas pelo compromisso keynesiano (que reduz a sociedade a relações de classe), uma ausência de sentido do presente e uma ausência de perspectivas de futuro. O segundo grande dilema, este focado igualmente por Cortina[2] é o do distanciamento dos cidadãos entre si e face ao Estado. Estando as relações de solidariedade institucionalizadas, absorvidas pela Estado-Providência, os cidadãos sentem como menos legítima a intervenção estatal em vários domínios (sendo obrigatório relembrar que essa deslegitimação é também fruto do próprio sucesso socio-económico e político do Estado-Providência). Adela Cortina opõe-se a esta ideia da solidariedade institucionalizada, dado que a solidariedade é um valor que cada um deve ter em relação a outro indivíduo, mas que não é passível de institucionalização. É a ideia (errada, a seu ver) de que a solidariedade pode estar em instituições que tem gerado o seu descrédito. É neste sentido que defende que o que é necessário, não é um Estado-providência no sentido de Estado de bem-estar, mas um Estado social de direito, enquanto Estado de justiça capaz de garantir a satisfação de níveis mínimos e irrenunciáveis do ponto de vista ético de direitos (pelo menos) de segunda geração (para lá dos de primeira geração).
Esta libertação da exclusividade de dois caminhos, um economicamente insustentável e outro socialmente ruinoso, implica uma recentragem nos objectivos que estão por detrás do surgimento, primeiro do Estado-protector e depois do Estado-providência, nomeadamente a prestação de serviços públicos[3]. A questão económica, instrumental, deve ceder o passo à questão de fundo, não começar pelo questionamento do custo do serviço público, mas do que ele é e de como podemos garantir a sua prestação. A pergunta deverá ser cultural (filosófica, política), não técnica – e a resposta, para o autor, deverá ser societal, não institucional. Não se trata então de uma rendição a uma racionalidade estratégica que está aqui em causa, de dizer que não há possibilidade de as sociedades garantirem aos indivíduos a existência de mínimos de dignidade em nome da eficiência; não foi o princípio da subjugação do económico que falhou, foi a forma como foi feita essa subjugação que, após décadas de sucesso, soçobrou.
Há, então, que reconstruir os laços de solidariedade entre os indivíduos socializando (desburocratização), descentralizando (serviços de proximidade) e autonomizando (transferindo a sua prestação para entidades – associações, fundações, instituições de solidariedade social – não estatais) os serviços públicos. Trata-se pois de fazer aumentar a visibilidade dos laços sociais, embora haja duas ressalvas a fazer. Por um lado, Rosanvallon rejeita qualquer mito comunitarista baseado na crítica do Estado moderno: foi em grande parte devido às vastas redes sociais que esmagavam o indivíduo (as quais, por conseguinte, tinham como principal característica não a solidariedade mas a opressão) que esse mesmo Estado surgiu. Por outro lado, e em coerência com o que acabámos de referir, o Estado mantém-se como um elemento fundamental.
A questão está em redefinir o espaço público e em revitalizar a cidadania (como Cortina afirma, a coisa pública só será de todos se for nossa[4] tornando a sociedade mais transparente. Naturalmente, uma sociedade mais transparente é também uma sociedade na qual o conflito será mais frequente – mas será também uma sociedade na qual o conflito será encarado não como uma fraqueza, mas pelo que ele é (uma decorrência da vida em conjunto) e pelo que ele pode ser de uma forma construtiva, um incentivo ao melhoramento dos mecanismos de regulação pacífica do conflito, ou seja, da democracia. Esta regulação pacífica tem de passar por um triplo compromisso: um económico, com as empresas (as quais devem, não apenas exigir, mas também permitir uma maior flexibilidade laboral); um político, com o Estado (o qual deve comprometer-se com uma redução do seu peso, permitir o desenvolvimento de um “espaço de associação humana sem coerção”[5] e aumentar as liberdades civis); e um compromisso da sociedade consigo própria, um compromisso social baseado na democracia e que revitalize a noção de contrato social.


[1] Em Hasta un Pueblo de Demonios Cortina relembra-nos igualmente que não podemos esquecer que “público” não é sinónimo de “estatal”.
[2] Ciudadanos del Mundo – Hacia una Teoría de la Ciudadanía, pp 70-76
[3] Rosanvallon fala em “serviços colectivos”, expressão que me parece menos apropriada por ser mais identificável com o Estado que com algo tão plural quanto a sociedade; a expressão “público” apresenta-se como bastante mais ampla e flexível, como já apontámos na penúltima nota.
[4] Hasta un Pueblo de Demonios, pág. 189
[5] Michael Walzer, citado por Adela Cortina em Hasta un Pueblo de Demonios, pág. 191

Origem e Decadência do Estado-Providência



Em A Crise do Estado-Providência, Pierre Rosanvallon argumenta que a crise, mais do que ser um facto económico, é antes de tudo um sentimento cultural: não é a redução da eficácia financeira (de resto, comum a qualquer grande organização, inclusivamente as grandes empresas) que põe em causa o Estado, mas a deslegitimação social, a pulsão para a liberdade individual ou o medo do controlo burocrático. Não há um qualquer limite concreto (lógicas próprias dos pensamentos marxista e liberal) ao crescimento do aparelho e das funções estatais – de resto, a tendência para o seu crescimento está inscrita no código genético do Estado moderno.
Rosanvallon parte do contratualismo para realizar tal afirmação. O Estado surge para proteger o indivíduo, detentor de um leque de direitos (da mesma forma que fora do Estado o indivíduo não pode livremente exercer tais direitos). O Estado é, desde o início, um Estado-protector que tem duas funções primordiais: a produção de segurança e a redução da incerteza. A par do indivíduo e inseparável dele, surge também a propriedade. Ela não é simplesmente uma questão própria de uma ideologia capitalista, ela é o que define o indivíduo. A propriedade em Adam Smith, por exemplo, não é apenas uma questão de property, mas também de propriety, ela define o indivíduo, separa o meu, o teu, o dele; ela não é só ter, ela é antes de tudo ser: livre, proprietário de si próprio.
Entretanto, conviria relembrar que a passagem do Estado-protector ao Estado-Providência estava já prenunciada no processo revolucionário francês. De facto, em três dos textos fundamentais do período revolucionário francês, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a Declaração dos Direitos do Homem (dita girondina), e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (dita montagnarde) é notório um conflito intestino e que se desenrola no próprio seio do pensamento contratualista. Ao passo que a primeira tem uma influência mais fortemente lockeana, na segunda, o art.2º é denunciador de uma alteração notória. A igualdade aqui deixa de ser uma condição, abstractamente concebida. Ao introduzir a palavra “gozo”, o legislador acaba por remeter a igualdade de direitos para um formalismo que carece de medidas pró-activas que a materializem. É a partir do artigo 22º que a Declaração girondina apresenta uma ruptura mais clara face a 1789. De facto, quatro dos seus trinta artigos dedicam-se em exclusivo e inequivocamente a questões de âmbito social: a educação, a assistência pública e a garantia social dos direitos, pedras angulares do Estado Social encontram aqui a sua sede, e a igualdade dos cidadãos e o dever de todos garantirem que cada um possa gozar dos mesmos direitos vão aqui buscar a sua fundamentação legal. Na Declaração montagnarde o artigo referente à assistência social (o XXI, e que surge à frente do artigo referente à educação) apresenta-se bem mais explícito e muito mais socializante que anteriormente. Em verdade, este artigo estipula a obrigação da sociedade em apoiar os mais desfavorecidos, quer pela concessão de trabalho, quer pela concessão de meios de subsistência aos que já não se possam prover a si próprios. Nos artigos II e III encontramos uma duplicidade da igualdade: ela tanto é considerada como um direito (art. II), como uma condição (nos termos do art. III, há igualdade de todos “por natureza e perante a lei”), o que constitui de certa forma uma tensão; a igualdade encontra aqui uma clara expressão da sua problematicidade, que se arrasta até aos nossos dias, entre o formalismo que se limita a afirmar a igualdade e o materialismo que defende a sua concretização.
Ora, a transição entre o Estado protector de direitos formais e o Estado que providencia a sua concretização é, nas palavras do autor, um duplo movimento de radicalização e de correcção. Ele segue a lógica própria do Estado-protector, dando-lhe coerência e procurando garantir que o indivíduo é verdadeiramente livre, tão igual quanto possível… e fraterno para com os outros indivíduos, quer queira, quer não (o imposto e a coerção estatal que lhe subjaz servindo de garante da solidariedade).
A elevação das aspirações dos indivíduos acima das necessidades primárias, o fortalecimento do pensamento utilitarista, a laicização e o desenvolvimento da ciência estatística (que substituem a incerteza da Providência religiosa pela certeza ou pela probabilidade mais favorável de uma providência estatal) completam este movimento. Ao longo dos séculos XIX e XX, cada momento de crise serve para redefinir o contrato social – e aprofundar o desenvolvimento do Estado. Isto é especialmente visível nos períodos após as duas Grandes Guerras. Face à tendência opressora dos Estados ditatoriais, as democracias foram provando a sua superioridade sendo agentes de libertação do indivíduo e pacificadoras da sociedade.
Onde nasce então a crise? A partir da década de 70 do século XX, o Ocidente vê-se confrontado com um período de recessão, ou de menor crescimento económico. Mais do que grave por si mesma, a crise económica põe em causa a inelutabilidade do progresso: a crise, mais do que económica, é uma crise das representações do futuro. A isto se juntam a deslegitimação do crescimento do Estado nas décadas anteriores pela ausência de conflito (ou seja, não houve episódios violentos nos quais a sociedade exigisse mais bens públicos, mas apenas um movimento mecânico e burocrático), a discordância face a fenómenos de correcção de pequenas desigualdades, gerando situações de injustiça social e por fim a balcanização da sociedade e a clientelização do Estado (que começa a operar cada vez mais em função de interesses alheios aos públicos).
Tudo isto traz à tona uma das características mais relevantes do Estado moderno: para defender o indivíduo, ele anulou a sociedade. A proclamada fraternidade/solidariedade falhou pois não pode resultar de um automatismo (nem de direita nem de esquerda, nem do mercado nem do Estado) mas de uma moral social, ou, se preferirmos seguir a linha de pensamento de Cortina, de uma ética pública cívica. A ineficácia económica do Estado-Providência resultará mais das formas de socialização que induz que do grau de socialização da riqueza.
Ao contrário da defesa de uma ética pública cívica, os neo-liberais defendem uma concepção atomista: o Estado, a sociedade, a política e a ética perdem toda a relevância: só o indivíduo, numa perspectiva absolutamente radical, enquanto um todo perfeito e solitário, resta. Este ser isolado da sociedade dispensa a alteridade e não entra em conflito: o indivíduo neo-liberal baseia-se na unanimidade pela indiferença pelo outro. A liberdade torna-se não-ética e não-política: ela é o resultado de um processo de maturação de uma racionalidade estratégica e a democracia não é mais que uma tecnologia social criada para manter este conceito reducionista de liberdade. Este indivíduo desligado do outro só pode aceitar um Estado que, ao invés de se limitar pelo mercado (Burke e Humboldt já tinham afirmado que isso não é plausível) é imerso pelo mercado, dissolve-se nele e na apoliticidade.
Tendo como ponto de partida a crise do Estado e rejeitando a alternativa neoliberal, Rosanvallon propõe um caminho alternativo, de certa forma híbrido.

Ainda sobre o Materialismo - a visão de um Racionalista Idealista e Crítico



Pedras Vivas, Pedras Mortas

António Sérgio, defendendo a democracia e o cooperativismo, afirma que Todo o cooperativismo é por natureza antiestatal[1] e que Só a democracia social o interessa[2]. Não são, por conseguinte, as instituições políticas ou o seu poder que o ocupam primariamente, mas a sociedade e os indivíduos.
Sérgio, nas suas Cartas do Terceiro Homem, discorre por múltiplas vezes sobre a questão dos meios e dos fins. Fá-lo afirmando que há qualquer coisa acima da técnica; fá-lo parafraseando André de Gouveia quando disse que Já Vossa Alteza sabe que hei-de trabalhar por edificar pedras vivas […] e se por usar disto me não fizerem o que é feito a outros, por edificarem pedras mortas, com toda minha pobreza me tenho por mais rico […].
A questão dos meios e dos fins está então em usar dos meios (a edificação das pedras mortas) para atingir os fins (a melhoria das condições de vida das pedras vivas da grei – passe-se o pleonasmo) e de não inverter esta relação, obrigando as pessoas a vergar-se às obras. A justiça na definição dos meios para atingir o objectivo da justiça entre os homens (ideia, que pese a distância, encontramos também em Rawls) evitaria os males advenientes da medicina do tipo [a que Sérgio chama] do António Maria (Fontes Pereira de Melo).
Para o autor, como para Herculano, as obras materiais, os melhoramentos materiais não passam de uma contra-senha dos reaccionários[3] que baralham e confundem os objectivos para que o poder se mantenha como um receptáculo de corrupções. O que importará será seguir as medicinas sociais do tipo do José Xavier (Mouzinho da Silveira), centradas nas populações. Estas medicinas exigem um conceito fundamental, a emancipação, que em Sérgio podemos desdobrar em dois: participação e liberdade.

Participação e Liberdade

Dir-me-á Você que é bem difícil obra a de conciliar a faina da ordenação das coisas, a eficiência prática, com o respeito das pessoas e com a participação de todos.[4] Justamente a isto, quer o autor responder. Desde logo, uma análise da relação entre meios e fins desde uma perspectiva de justiça social faz com que Sérgio afirme que necessidades como a do aumento de produção só o são na medida em que delas resultem benefícios para o povo. Ora, os benefícios económicos só podem aqui resultar em favor do povo na medida em que ele se associar pelo cooperativismo, modelo de organização económica que emancipa da carestia de vida pela distribuição justa de bens, que emancipa na medida em que aqui trabalhar para os demais é trabalhar para si mesmo e por fim que emancipa por atribuir a cada um o poder de participar da condução dos destinos da sua comunidade.
As cartas XXI a XXIV dedica-as o autor à barragem e às gentes de Vilar da Veiga. Fá-lo para exemplificar a necessidade de haver a participação do povo nas decisões que afectem a sua vida, comparando com o exemplo de sucesso da Junta do Vale de Tennessee. Porque nos Estados Unidos não houve a superstição das obras e se pretendeu que todos tomassem parte na definição do projecto, essa foi uma obra de sucesso. Pelo contrário, no Cávado foram os capitalistas executores do projecto [que decidiram] da sorte das pedras vivas da Grei[5], resultando na aceitação pela maioria dos expropriados de uma série de contratos ruinosos. Para evitar isto, pugna António Sérgio por duas coisas: uma educação que emancipe os indivíduos pelo esclarecimento e pelo trabalho, e um poder (todos os poderes) que, numa condição quase cristológica, labore para deixar de ser necessário: o melhor político, como o melhor pedagogo, é aquele que com a máxima simplicidade e humildade trabalha constantemente por se tornar dispensável; é o que treina o povo para se governar por si mesmo[6] - passagem que já anteriormente aqui citei.

O Homem do Meio

É ao pugnar por um tipo de homem capaz de libertar e de se libertar, por conseguinte por uma abordagem antropológica, que Sérgio mais se distingue de outras abordagens. Este homem não pode nem cair no ingénuo romantismo nem no materialismo prático. Não pode ser um homem que defenda o autoritarismo puro nem o libertarismo indisciplinado – no meio dos dois extremos terá de existir o Terceiro Homem: o Homem do Libertarismo auto-disciplinado e reformador, defensor acérrimo da liberdade mas que não olvida a extrema dificuldade, a responsabilidade de ser livre. É nessa medida que a democracia não pode ser entendida como uma (lembrando Bocage) mãe dos prazeres mas como uma filha da custosa dominação de si próprio.[7]
Este é o homem que Sérgio quer que se faça (e que se faça livremente, a si próprio): na sua primeira carta, lembra Pascal, que afirmava que não é a opção por um extremo que mostra a nossa grandeza, mas a capacidade de tocar as extremidades e ocupar o espaço que as separa.


[1] In Cartas do Terceiro Homem: Democracia, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1974, pág. 281
[2] Pág. 272
[3] Pág. 215
[4] Pág. 135
[5] Pág. 225
[6] Pág. 190
[7] Pág. 206

Sobre os Materialismos


Já que citei Madame de Staël no post anterior, aproveito e deixo também uma das partes que mais gostei do De l'Allemagne. Gera-me sentimentos contraditórios: por um lado, ele pode ser interpretado de uma forma religiosa e bafienta (embora a nossa amiga Germaine não fosse propriamente uma beata), mas por outro pode ser verdadeiramente revolucionária. Prefiro interpretar desta segunda maneira: o ser humano é mais que que necessidades físicas. Claro, elas existem. Mas a sua satisfação não chega.


La philosophie des sensations est une des principales causes de […] frivolité. Depuis qu’on a considéré l’âme comme passive, un grand nombre de travaux philosophiques ont été dédaignés. Le jour où l’on a dit qu’il n’existait pas de mystères dans ce monde, ou du moins qu’il ne fallait pas s’en occuper, […] les individus qui jouissent en parfaite santé de tous leurs sens se sont crus les véritables philosophes. On entend sans cesse dire à ceux qui ont assez d’idées pour gagner de l’argent […], qu’ils ont la seule philosophie raisonnable, et qu’il n’y a que des rêveurs qui puissent songer à autre chose. En effet, les sensations n’apprennent guère que cette philosophie, et si l’on ne peut rien savoir que par elles, il faut appeler du nom de folie tout ce qui n’est pas soumis à l’évidence matérielle.

Madame de Staël, in De l’Allemagne, Terceira Parte, La Philosophie et La Morale, capítulo IV, Du persiflage introduit par un certain genre de philosophie

Lynn White: o Génesis da crise ecológica




Uma exegese da Bíblia

No seu artigo The Historical Roots of Our Ecological Crisis, Lynn White Jr. apresenta uma evolução da relação entre o homem ocidental e o mundo natural. Reconhecendo que todas as formas de vida alteram o seu meio, o autor dedica-se a encontrar um fio condutor que nos leve desde a presente situação de crise ecológica até a um início da nossa relação conflituosa com o ambiente.
O autor reconhece que a ciência e a tecnologia actuais são inequivocamente ocidentais. No entanto, no nascimento do Ocidente, com a Grécia e Roma, a relação entre o Homem e a Natureza eram distintas das actuais. Abundavam figuras míticas semi-humanas, semi-animais, e florestas, montanhas, fontes tinham espíritos que os protegiam e aos quais o homem devia prestar culto. O animismo desapareceu com o advento do cristianismo que, mesmo que tenha admitido corruptelas à sua origem judaica despida de imagens e centrada num deus único (por exemplo, os santos), não deixou de centrar sempre no homem, na figura humana, a sua constelação conceptual.
O cristianismo adoptou do judaísmo a crença num percurso histórico linear (e não cíclico, como nos clássicos) e que, tendo um fim, tinha também um princípio: a striking story of creation, nas palavras de Lynn White Jr.. O deus criador não se limitou a fazer o mundo, mas fez também um ser, de entre todos, especial – o homem. Especial, porque à sua imagem. É a este ser semelhante a deus que é confiada a tarefa de zelar pela criação divina, mas não só. Toda a criação tem como função servir o homem. Não se trata por isso de uma criatura entre outras, mas de uma criatura dominadora; tal como o deus cristão cria o homem e por isso o governa, o homem é mandatado para governar a terra. O seu discernimento permite-lhe também ele ser um criador – e será na medida em que mais se assemelhar a deus, mais e melhor conseguir criar, que melhor desempenhará as suas funções.

O contexto geográfico

Não obstante, esta é apenas uma interpretação da Bíblia. Não podemos afirmar que seja a única e o autor faz a ressalva de forma absolutamente clara. De facto, o cristianismo oriental (de influência grega) apontava o caminho da salvação como sendo o do pensamento – o pecado surgia quando algo se imiscuía na relação entre o homem e deus. Por conseguinte o homem devia seguir a iluminação, a contemplação da obra divina; a natureza era um conjunto de ensinamentos dados por deus à criatura.
Pelo contrário, a cristandade latina entendeu o pecado como um mal moral, superável por uma conduta recta guiada pela vontade. Esta vontade activa levaria a que se entendesse como fim do homem a descoberta da actividade criadora divina. A religação deus/homem não se faz por uma contemplação da criação, mas por uma aproximação das capacidades humanas às divinas; o homem quer descobrir como deus age, e agir ele próprio, ser também ele criador.
Para esta diferenciação, Lynn White Jr. aponta uma data de nascimento e um berço: o noroeste europeu do século VII d.C.. Aqui, o clima e os solos tornavam obsoletas as técnicas de cultivo que resultavam bem na orla do Mediterrâneo. Foi necessário recorrer a técnicas mais intensivas, com recurso a maior força animal e a novos arados. As necessidades das famílias deixaram de ditar a utilização da terra, na qual se tornou determinante a capacidade tecnológica de vencer as dificuldades apresentadas pelo meio. O homem que vence sobre a natureza é o homem dominador, conquistador e criador – já não é parte da natureza, mas o seu senhor.
Seria a este Ocidente, cristão e latino, que confluiriam mais tarde todos os avanços científicos das restantes civilizações. Seria também aqui que, cerca de mil anos depois da viragem do século VII, se dariam duas revoluções fundamentais para a compreensão do ascendente que a tecnologia exerce hoje sobre o mundo inteiro.

Ciência e Indústria

Science was traditionally aristocratic, speculative, intellectual in intent: technology was lower-class, empirical action-oriented. Desta forma Lynn White Jr. separa uma primeira revolução, no séc. XVII, científica, da segunda revolução, a industrial, do séc. XVIII. Na primeira, a aristocracia ainda dominava a sociedade. Foi o século da Glorious Revolution. Na segunda, é a burguesia que ascende – foi o século das revoluções Americana e Francesa.


Parêntesis: retomando a dicotomia entre contemplação e acção, Germaine de Staël atribui a supremacia do ser humano à sua capacidade de utilizar ambas em seu proveito:

[…] il y a dans l’esprit humain deux tendances aussi distinctes que la gravitation et l’impulsion dans le monde physique : c’est l’idée d’une décadence et celle d’un perfectionnement. […] la doctrine de la perfectibilité et celle de l’âge d’or réunies et confondues excitent tout à la fois dans l’homme le chagrin d’avoir perdu et l’émulation de recouvrer. […] de cette rêverie et de cet élan naît la véritable supériorité de l’homme, le mélange de contemplation et d’activité […].

Madame de Staël, in De l’Allemagne, Garnier-Flammarion, Paris 2001, pp. 259 e 260


O autor metaforiza a fusão entre a ciência e a técnica, no século XIX, com a expressão unity of brain and hand. Foi esta união (que na sociedade britânica, mais que em qualquer outra, não era apenas metafórica mas consubstanciou-se com os casamentos cruzados entre aristocracia e burguesia, permitindo a construção da maior potência do século XIX) que permitiu a efectivação do credo baconiano, como White o designa, de que “conhecimento tecnológico significa poder tecnológico sobre a natureza”.

segunda-feira, 28 de maio de 2007

Voltaire


Acabei há uns dias de ler o Traité sur la Tólerance do inefável Voltaire e resolvi partilhar algumas das melhores frases (e é difícil escolher):



  1. Il semble que le fanatisme, indigné depuis peu des succés de la raison, se débatte sous elle avec plus de rage. Bom, isto lembra-vos alguma coisa? A mim parece-me ser todo este início de século XXI. Ah, já agora, o livro foi escrito em 1763.


  2. On sait assez ce qu'il a coûté depuis que le chrétiens disputent sur le dogme: le sang a coulé, soit sur les échafauds, soit dans les batailles, dès le IVe siècle jusqu'à nos jours. E não me parece que o sangue vá parar de correr. Os tempos estão de feição para a religião - o que significa que estãos maus para a paz.


  3. La philosophie, la seule philosophie, cette soeur de la religion, a désarmé des mains que la supersticion avait si longtemps ensanglantées; et l'esprit humain, au réveil de son ivresse, s'est étonné des excés où l'avait emporté le fanatisme. Esta foi também a proposta de Feuerbach, feita um século depois. Infelizmente, continuamos à espera.


  4. Le droit de l'intolérance est donc absurde et barbare: c'est le droit des tigres, et il est bien horrible, car les tigres ne déchirent que pour manger, et nous nous sommes exterminés pour de paragraphes.


  5. Le passage de Suétone fait voir que les Romains, loin d'opprimer les premiers chrétiens, réprimaient alors les Juifs qui les persécutaient. Ora aqui está um belo mito para desmontar.


  6. [...] si vous disiez que c'est un crime de ne pas croire à la religion dominante, vous accuseriez donc vous-même les premiers chrétiens vos pères, et vous justifieriez ceuz que vous accusez de les avoir livrés aux supplices. É um dos problemas em que caem todos os conservadores e tradicionalistas.


  7. [...] depuis les jours florissants de l'Église jusqu'à 1707, c'est-à-dire depuis environ quatorze cents ans, la théologie a procuré le massacre de plus de cinquante millions d'hommes [...]. Bom, e isto fazendo as contas por baixo. Nem mesmo Mao Tsé Tung, Hitler, Estaline ou Pol Pot conseguiram exterminar percentagens tão elevadas da população de determinados países quanto a religião.


  8. [...] il faut donc que les hommes commencent par n'être pas fanatiques pour mériter la tólerance. A questão da tolerância para com os intolerantes. E que hoje é fulcral.

Seremos culturalmente oligárquicos?

Ao ler o artigo de Luísa Schmidt na revista Única desta semana fiquei deprimido. O quadro que aqui vêem foi de lá retirado e é esmagador. Ao fim de trinta anos de Democracia estamos bastante atrás da Lituânia, da Letónia ou da Polónia em termos de igualdade social. Nenhum outro país tem um rácio que chegue sequer aos 7 e o nosso é de 8,2: só à conta da nossa mediocridade, a tabela tem de ser alargada em mais duas colunas.
Seremos culturalmente oligárquicos, cronicamente estúpidos?

Outra coisa me veio também à mente ao ver o quadro: Gosta Esping-Andersen. Readaptando a sua análise, consigo entrever na União Europeia cinco grandes grupos de países em termos de distribuição de riqueza (e que naturalmente são produto das suas políticas sociais e do modelo económico).



  1. Os mais igualitários são realmente os escandinavos: Suécia, Finlândia e Dinamarca são indubitavelmente os países com rácios inferiores.

  2. Atrás deles, temos os países que seguem o modelo continental: Alemanha, Áustria, Bélgica, França, com rácios de cerca de 4.

  3. Já muito distanciados, nos países anglo-saxónicos (Irlanda e Reino Unido) os mais ricos ganham 5 a 6 vezes mais que os mais pobres.

  4. Com valores muito similares, está o refugo do modelo continental, Espanha, Grécia, Itália: os países mediterrânicos (ver a este respeito Mozzicafreddo e Salis Gomes).

  5. Com valores ligeiramente superiores, alguns dos países de Leste (nem todos - por exemplo a República Checa e a Eslováquia têm valores que os colocam perto dos países escandinavos) apresentam um rácio próximo do 7.

Bom, e depois há o refugo do refugo. Pior que o Leste, está Portugal. Eu gosto de tentar acreditar que conseguiremos dar a volta por cima. Mas se ao fim de trinta anos conseguimos menos do que vários dos países de Leste em quinze, terei razões para não ser pessimista?

Não é só o islamismo que tem regras imbecis

Em Israel a empresa Zara pediu desculpas aos fundamentalistas judeus por numa peça de roupa ter misturado algodão e linho.

domingo, 27 de maio de 2007

Sobre o Cartão Único

Ainda sobre Maria Filomena Mónica...


Dia 12 de Maio escrevi no Fórum Liberal Social o seguinte post:
http://forum.liberal-social.org/viewtopic.php?t=136
Artigo 35.º (Utilização da informática)
[...] 5. É proibida a atribuição de um número nacional único aos cidadãos. [...]

Confesso-me procupado com as tentativas de atacar este artigo da Constituição, que considero ser dos melhores que ela contém. A título de exemplo, deixo a ligação http://www.jsdstr.com/noticias_comum/ver_docs.asp?local=25&txt=102.


É realmente uma das situações que mais me aflige actualmente: a leveza com que se entende que não há qualquer perigo de utilização indevida, seja por parte do Estado, seja por parte de funcionários do Estado, dos nossos dados pessoais.
Isto, na verdade, é tudo uma questão de eficiência e de pragmatismo, entende-se. Eu não digo que um Estado totalmente corrupto e mal intencionado não me iorá invadir a privacidade mesmo sem Cartão ou Número Únicos - digo apenas que a ocasião faz o ladrão: a disponibilidade imediata de aceder a todos os meus dados, a toda a minha vida, de uma só cajadada facilitará a arrogância estatal ou burocrática.

Maria Filomena Mónica abre o livro a que me referi no post anterior com este mesmo tema (o texto é bem feliz e título ainda mais: Quantos liberais há no meu país?) e diz algo que eu creio que deve ficar bem explícito: A convicção de que os inocentes nada têm a temer com a introdução deste tipo de documentos é falsa. Foi muitas vezes contra inocentes que os Estados usaram a informação que possuíam. Eu atrevo-me mesmo a dizer: mais facilmente se enredará inocentes em episódios kafkianos que se apanhará algum criminoso.

E pergunto se de entre os defensores do Cartão ou do Número únicos algum alguma vez leu Orwell, ou Kafka, ou Boulgakov, ou Huxley. E não sei qual a hipótese pior: se não leram pelo menos um, têm sérias lacunas culturais. Se leram, são estúpidos e não perceberam o que lá estava.

sábado, 26 de maio de 2007

As "Confissões de uma Liberal" e a Reforma do Sistema Eleitoral

No livro vendido com a revista Sábado desta semana, um conjunto de artigos de Maria Filomena Mónica, escritos entre 2002 e 2006, houve um que me despertou a atenção, Esta lei eleitoral deve ir para o lixo, de 21 de Janeiro de 2005 (pp. 43-46).

Nele, MFM defende a substituição do actual sistema proporcional por círculos uninominais. Este debate é longo e eu não vou falar de algumas das questões que normalmente são referidas (e que a autora considera enfadonhas - nomeadamente, a questão do caciquismo e da corrupção, que entre nós ficou conhecida como política de campanário, com sobrevivências em Daniel Campelo, Valentim Loureiro, Fátima Felgueiras e outros bons exemplos).

Não vou tratar desse assunto, primeiro porque de facto não é muito estimulante (concordo - falamos dele quase todos os dias, embora normalmente não a respeito dos círculos eleitorais) e segundo porque a minha rejeição dos círculos uninominais (embora aceite que eles multiplicam várias vezes a possibilidade de comprar e vender votos e de gerar redes clientelares no parlamento pelo menos tão grandes quanto as que já temos nas autarquias) não vai tanto por aí. É mesmo de fundo, é provocada pelo asco ao PS e ao PSD (às pessoas que neles estão e que estão ali como estariam em qualquer outro partido, desde que esse partido detivesse o poder) e é por total desconfiança face às elites (bom, à oligarquia, que como mostrei com a citação do Sérgio, elites são outra coisa). E não só. Não é só das elites que desconfio: é das maiorias. Tenho horror de maiorias absolutas. Assustam-me. Todo o poder absoluto assusta-me.

Diz MFM que não confia a Sócrates a tarefa de escolher os deputados, prefere ser ela a fazê-lo. Para ter um deputado seu, o qual conhece e o qual pune (não voltando a votar nele) se por ventura o seu desempenho for mau.

Desde logo, há uma questão importante: se o deputado em causa for um independente, provavelmente não vai poder punir: ele não é obrigado a voltar a candidatar-se. Um partido passa por eleição após eleição - podemos premiá-los e puni-los sucessivamente. Com independentes já não é assim.

Em segundo lugar, pretender que o deputado eleito por um círculo uninominal representa imparcialmente todos os cidadãos desse círculo não é muito sério. Ele realmente não representa: tem interesses próprios, um eleitorado próprio, uma agenda própria. E é lícito que o tenha: o que não é lícito é que o resto da população que está excluída desse programa, seja por dele discordar, seja por de facto não ser nele contemplada, não ter ninguém que represente os seus interesses.

Em terceiro lugar e estreitamente ligado ao ponto anterior, está o seguinte. Afirmam os defensores dos círculos uninominais que não faz sentido 230 deputados representando toda a gente, pois na prática acabam por não representar ninguém. Concluem que é preciso essa ligação emotiva à cara, à pessoa. Não digo que isso seja irrelevante. Digo apenas que isso é metade da história. Há imensas pessoas com quem simpatizo na política e dos mais variados partidos. Mas lá por achar que o Adriano Moreira deve ser uma pessoa simpática, não quer dizer que iria confiar a um conservador e ex-ministro de Salazar os destinos do meu país. E certamente que ele nunca me representaria pois o conservadorismo (seja na versão soft do pós-salazarismo seja nas suas versões mais duras do comunismo e fascismo) é exactamente o contrário de tudo o que defendo. Há este pequeno problema: a política não é apenas a gestão corrente de um orçamento. É sobretudo o confronto de diferentes percepções de como e com que propósitos essa gestão deve ser feita.

Por fim, uma outra objecção. As outras três eram relativas à situação hipotética do pós-reforma. Mas há ainda o problema do antes. Nomeadamente, se MFM não confia em Sócrates para escolher os seus deputados, já confia nele para definir os círculos eleitorais? É que isto de esquartejar o país em 180, 200, 230 círculos não é brincadeira nenhuma. Levanta problemas práticos muito sérios. Os círculos teriam de ser alterados com grande frequência para evitar distorções devido à mobilidade populacional. Outra questão, é o próprio desenho dos círculos. Quantos fenómenos de gerrymandering teríamos nós por esse país? Bom, a resposta é fácil: tantos quantos os que conviessem ao PS e ao PSD.

Lamento imenso, mas eu é que todo não confio nessa gente para definir regras.

A minha saída do Bloco

Quarta-feira dia 16 de Maio, mais de um ano depois de ter tomado essa decisão, fui finalmente desfiliar-me do BE, partido do qual fui militante durante cerca de cinco anos. Na folha em que pedi a desfiliação, não fui capaz de escrever nenhum dos (muitos) motivos que me levaram a fazê-lo. Pior, não fui capaz de escrever o único motivo realmente importante.
Indo por partes:
  1. Não concordo com o BE em questões como a Segurança Social (defendo o aumento da carreira contributiva e o fim de todos os sistemas paralelos) ou a legislação laboral (a lei que temos está a atirar os jovens para os recibos verdes e os contratos temporários para compensar os privilégios de quem usufrui de contratos eternos); no entanto, isso não é determinante. Se a SS falir, a vida continua, cá nos arranjaremos. Quanto ao emprego, quem é jovem à partida tem boas pernas, pode bem emigrar.
  2. Simultaneamente, fui-me apercebendo de algumas mudanças de simpatias minhas: constatei que se estivesse no Reino Unido, provavelmente votaria LibDem; se estivesse em França, teria votado Bayrou (que entretanto formou um novo partido, separando-se da UDF, mais à direita).
  3. Irritou-me a candidatura do Louçã nas Presidenciais. Achei tanto ideologicamente arrogante como estrategicamente idiota. O apoio ao Manuel Alegre teria dado um grande empurrão ao BE, alicerçando o seu crescimento nas franjas de esquerda do eleitorado do PS. Recordo-me de há uns anos, nos primeiros tempos do BE, se falar em "alargar", ultrapassar sectarismos, construir maiorias sociais. Pois perante uma oportunidade de ouro, o que fazem? Entrincheiram-se numa candidatura partidocrática tentando fazer o mesmo que o PCP: defender o seu quintalito. Os resultados aí ficaram: segundo uma sondagem do Correio da Manhã, 50% dos que votaram no BE nas Legislativas de 2005, votaram em Alegre nas Presidenciais. Apetece dizer "Bem feito!", porque é mesmo bem feito. É que há muita gente no BE que ainda pensa que pode conquistar o seu espaço na esquerda tentando competir com o PCP em termos de eleitorado (e de discurso). No entanto, o PCP tem mantido os mesmos resultados, ao passo que o BE tem crescido bastante. De onde vêm esses votos? Do PS. Mas insistem em ficar no PREC. Que fiquem. Eu cá é que não fico. Não fico, até porque felizmente nunca lá estive.

E agora vamos à questão realmente importante. A minha grande desilusão com o Bloco de Esquerda, aquela que me doeu que se fartou, que foi realmente insuportável foi a (não-)reacção perante a crise dos cartoons dinamarqueses. Eu pensava que o BE era a favor de uma sociedade laica e que era radicalmente contra as pretensões de superioridade dos religiosos. Enganei-me redondamente: o BE odeia o fundamentalismo católico em Portugal (e odeia bem) mas não tem problemas com o fundamentalismo islâmico. Se é ocidental, é mau. Se não é Ocidental, já é bonzinho; e se se porta mal, tem desculpa, porque foi o ocidental que o provocou (Quantos ocidentais vivem nos países muçulmanos? Quantos muçulmanos vivem no Ocidente? Creio que os números nos dizem bem quem é que é realmente tolerante).

Como se não bastasse, tivemos a carta perfeitamente alarve de Freitas do Amaral. Como é possível que o partido em que votei não tenha pedido de imediato a demissão de alguém que, sendo Ministro dos Negócios Estrangeiros, ao invés de defender um dos nossos maiores aliados (a Dinamarca) vem falar de religiões abraãmicas e não sei que mais? Não só foi incompetente (passou por cima dos laços - UE e NATO - que nos unem à Dinamarca) como politicamente a sua atitude foi inaceitável ("esqueceu-se" que Portugal é um país laico).

O laicismo não é bom apenas quando se trata de bater na Igreja Católica. O laicismo é bom porque é bom. É bom porque é justo. É bom porque só num Estado laico podemos respeitar a liberdade de cada um e igualdade de todos perante a lei. Ser laico na segunda-feira porque estamos a discutir a Concordata e na terça-feira pôr o laicismo na gaveta porque um muçulmano nos diz que não podemos fazer cartoons sobre a religião, tentando pôr paninhos quentes, não é simplesmente idiota. É hipócrita, é vil e é mentiroso.

European Political Ideologies

http://www.selectsmart.com/FREE/select.php?client=polphil

Também fiz este teste duas vezes, e os resultados foram consistentes: no primeiro lugar, surgiu em ambos os casos a denominação Liberal Social; nas restantes posições, e entre as cinco primeiras, repetiram-se mais três: Social-Democrata; Terceira Via; Ecologista/Verde.

Definições dadas no sítio em causa:

Liberal Social
Like all liberals, you believe in individual freedom as a central objective - but you believe that lack of economic opportunity, education, healthcare etc. can be just as damaging to liberty as can an oppressive state. As a result, social liberals are generally the most outspoken defenders of human rights and civil liberties, and combine this with support for a mixed economy, with an enabling state providing public services to ensure that people's social rights as well as their civil liberties are upheld.

Social-Democrata
Like other socialists, you believe in a more economically equal society - but you have jettisoned any belief in the idea of the planned economy. You believe in a mixed economy, where the state provides certain key services and where the productivity of the market is harnessed for the good of society as a whole. Many social democrats are hard to distinguish from social liberals, and they share a tolerant social outlook.

Terceira Via
The Third Way is a fairly nebulous concept, but it rests on the idea of combining economic efficiency - i.e. a market economy with some intervention - with social responsibility. The focus is emphatically on the community as a whole, and not necessarily equality per se. Adherents of the Third Way range from moderate to conservative in their social views, and have recently been willing to take a "tough" line on a range of social issues.

Ecologista
You believe that the single greatest challenge of our time is the threat to our natural environment, and you feel that radical action must be taken to protect it - whether in the enlightened self-interest of humanity (in the tradition of 'shallow ecologism') or, more radically, from the perspective of the ecosystem as a whole, without treating humans as the central species (deep ecologism).

Bússola Política

http://www.politicalcompass.org/printablegraph?ec=-2.63&soc=-6.51

http://www.politicalcompass.org/printablegraph?ec=-6.25&soc=-7.38

Economicamente de esquerda (com resultados variáveis) e moralmente profundamente libertário. O que eu gosto no Political Compass é o de permitir que vejamos as nossas posições políticas a uma luz diferente, a duas dimensões, jogando com a questão social e moral e com a questão económica. De facto, sendo eu de esquerda, não tenho problemas nenhuns em dizer que detesto os tipos de PCP - e não é por acaso. Sinto-me mais próximo de pessoas que defendam uma economia mais desregulada que o que eu defendo, mas que por outro lado defendam indivíduos mais livres - e também não é por acaso.

De facto, as nossas posições económicas não dizem muito a nosso respeito. Elas variam muito consoante os contextos (e nem seria de esperar outra coisa, dado que não há soluções milagrosas). Agora, as nossas posições morais e sociais têm que ver com o nosso ethos, com o nosso carácter e com a nossa concepção de Homem. Elas vão ao nosso íntimo e revelam o que realmente somos, o que realmente defendemos e por que o defendemos.

Eu sou de esquerda, e sou-o porque creio que uma sociedade que articule alguma regulação estatal e social (são coisas diferentes) com economia de mercado (incluindo propriedade privada e economia social) produz uma sociedade e indivíduos mais livres. E isto é o que realmente me move. Não tenho nada a ver com defesa de ditaduras (sejam a de Cuba, como o PCP, seja o Chile de Pinochet, como João Paulo II) e não admito sequer que tal o seja feito em nome de uma suposta liberdade material.

Creio que é esclarecedor o facto de Estaline, João Paulo II, Mugabe ou Bento XVI pertencerem todos ao mesmo campo: a esquerda autoritária.

Que Estado? (cont.)

[...] o melhor político, como o melhor pedagogo, é aquele que com a máxima simplicidade e humildade trabalha constantemente por se tornar dispensável; é o que treina o povo para se governar por si mesmo.

António Sérgio, Cartas do Terceiro Homem

Nas suas Cartas Sérgio repete inúmeras vezes esta ideia: a função das elites e do Estado é fazer os possíveis por se tornar dispensável. Todos sabemos (se o assumimos ou não é outra questão) que eliminar completamente o Estado é impossível. Não me parece no entanto impossível fazer o que ele pede: no prefácio da segunda edição do II Tomo dos seus Ensaios afirma o autor que deve ser cultivado o amor da accção auto-refreada e calma, quotidianamente revolucionária, sem demagogia nem retórica, […] sem impulsivismo e espectáculo.

Creio que é um bom guia, esta frase do Sérgio: defender um reformismo que não seja amorfo mas que seja quotidianamente revolucionário. O (pseudo-)realismo que muitas vezes vemos é apenas uma forma torcida de dar determinados factos como adquiridos. Todas as doutrinas que em dado momento tomam a dianteira da cena política tendem a apresentar-se como as únicas realistas. Deixo por isso esta outra citação do António Sérgio, algo que ele escreveu contra a arrogância pseudo-científica dos marxistas:

E se sou revolucionário, é por ser idealista; se sou socialista, é por lei intrínseca do meu próprio espírito […]. O revolucionismo verdadeiro não está nas coisas, mas sim em nós. […] Ninguém é socialista por se conformar com a matéria, mas sim por apego a um ideal de justiça, a um protesto interior.

Ensaios, Tomo I

Alenquer vs Palmela

Ontem na entrevista na SIC Notícias o disparate prosseguiu: o ministro afirma que o aeroporto, sendo um investimento de extrema importância, deve ser realizado onde já há infra-estruturas, não devendo ser visto como um pólo dinamizador de zonas deprimidas.

Ora, vejamos se estou a ver bem:

- Alenquer, que fica algures entre a zona saloia e o Ribatejo, é então uma zona altamente desenvolvida.

- Palmela,
  1. que está rodeada das zonas industriais do Seixal, Barreiro e Setúbal;
  2. em cujo concelho fica a AutoEuropa;
  3. que fica a poucas dezenas de quilómetros de um dos maiores portos do país (Setúbal);
  4. que é facilmente conectável com outro porto fundamental, o de Sines;
  5. que pode ficar ainda mais ligada a Lisboa aquando da construção da ligação Barreiro/Chelas;
  6. e que ainda pode exercer uma atracção considerável sobre o interior espanhol (Extremadura), pelo contrário, é uma zona deprimida e sem qualquer relevância.
  7. Se a isto somarmos a maior proximidade ao Algarve e o facto de estar perto de Tróia e do Litoral Alentejano (que como toda a gente sabe não têm qualquer relevância nem potencial turísticos) temos o quadro completo: um deserto.


Um autêntico deserto: a inteligência do senhor Mário Lino.

A Margem Sul é um deserto?

O PS parece ter uma certa tendência para atacar um dos distritos que lhe é mais fiel - o de Setúbal (relembro a co-incineração). Não sei quem é pior - se o PS se os habitantes do distrito por votarem nele.

Mesmo arriscando ser mandado para o Tarrafal (os tempos já foram mais propícios para quem discorde do Governo), gostaria de repudiar as afirmações do ministro Mário Lino com números e não apenas com a indignação que senti quando ouvi o que ele disse. Sim, porque eu posso não ser engenheiro, mas parece que sei mais de números que o senhor ministro (e ao que parece, engenheiro - esta é a piadinha que me pode fazer ganhar a viagem ao Tarrafal ou, quem sabe, ao deserto do Saara).

Sobre a Margem Sul
1 - Assim, a Margem Sul no seu conjunto tinha em 2001 718 mil habitantes (hoje calcula-se que tenha cerca de mais 10%)
2 - A sua densidade populacional era de 462 habitantes por quilómetro quadrado (a nacional é de 114, portanto, 4 vezes inferior)
3 - Tem 5 Hospitais públicos (Almada, Barreiro, Montijo, Setúbal e Outão)

Sobre a Ota e o Poceirão
1 - As freguesias em causa e os concelhos em que se inserem têm densidades muito similares
2 - Ambos estão a cerca de 50 quilómetros de Lisboa de carro (o Poceirão está 2km mais perto, aproximadamente)
3 - Ambos têm, num raio de 40km, 4 cidades perto de si - com a substancial diferença de as cidades próximas do Poceirão terem cerca do triplo dos habitantes das cidades próximas da Ota.

Seguem os números que recolhi.
http://radicallivre.no.sapo.pt/otapoceirao.doc

Que Estado?

O chamado "Estado de bem-estar" confundiu, a meu ver, a protecção de direitos básicos com a satisfação de desejos infinitos, medidos em termos do "maior bem-estar do maior número". No entanto, confundir a justiça, que é um ideal da razão, com o bem-estar, que o é da imaginação, é um erro pelo qual podemos acabar por pagar um preço alto: esquecer que o bem-estar cada um há-de costeá-lo a suas expensas, enquanto que a satisfação dos direitos básicos é uma responsabilidade social de justiça que não pode ficar exclusivamente em mãos privadas e que continua sendo indispensável um novo Estado social de direito - um Estado de justiça, não de bem-estar - alérgico ao megaestado, alérgico ao "eleitoralismo" e consciente de que deve estabelecer novas relações com a sociedade civil.

Adela Cortina - Ciudadanos del Mundo, Hacia una Teoría da la Ciudadanía

Trouxe este excerto porque dele retirei várias ideias que me pareceram interessantes:

1 - Crítica ao consequencialismo e ao utilitarismo, seu máximo representante, que da filosofia moral transitou para a economia e que a partir daí dominou a política;

2 - Inevitavelmente, defesa de uma visão racionalista e deontologista, o que permite ter uma ideia mais clara do que se pretende quando se defende como deve ser o Estado;

3 - E naturalmente o que mais me chamou a atenção, uma crítica ao Estado social sem o pretender aniquilar, mas pretendendo melhor defendê-lo: substituir o conceito de bem-estar pelo de Estado de justiça parece-me ser a melhor defesa possível de uma sociedade que pretende ser mais livre por ter as fronteiras do estado melhor definidas, mas sem pôr em causa a liberdade que resulta para cada indivíduo por lhe serem reconhecidos os mínimos que respeitam a sua humanidade. A autora consegue aqui fazer uma coisa que me parece muito importante: a de dizer simultaneamente que tem de haver mínimos (e que é a esses mínimos, que não são benesses do estado mas direitos de cada indivíduo, que nos devemos ater) e que não podemos cair no miserabilismo caritativo e filantrópico.