Não posso por isso senão ficar boquiaberto quando vejo que, nesta Europa que conhece hoje o seu mais feliz período de liberdade (e por isso, talvez o seu último antes de regressar às trevas religiosas) a Esquerda, ao mesmo tempo que critica a desigualdade salarial entre homens e mulheres (17,6%, um crime; questiono-me se é nas mesmas profissões), acha aceitável a assunção pública da inferioridade moral das mulheres.
Pergunto-me: se fosse a Igreja Católica a decidir que todas as mulheres deviam cobrir-se da cabeça aos pés, será que a Esquerda reagiria da mesma forma?
Pois, a resposta é simples, não é?
No entanto, criticar uma "tradição" muçulmana (que, na verdade, nem é assim tão tradicional quanto isso) é sinal de intolerância.
A questão impõe-se: mas a enxurrada de proibições é solução ou agrava o problema (isolando, por motivos vários que não vou aqui desenvolver, as mulheres afectadas)? Desconfiemos das respostas simples. O mero véu é para mim nojento. Sim, dá-me nojo ver uma mulher com um véu religioso. Mas não apresenta, normalmente, perigo. Já os véus que cobrem toda a face, e pior ainda, a burqa, colocam reais problemas de segurança.
Há outras questões paralelas que poderíamos colocar. Ao fim e ao cabo, o Ocidente, essa organização de malfeitores, não vai à Arábia Saudita dizer como eles se devem comportar. Os ocidentais sabem que quando vão a esses países têm de tomar especiais cuidados - e de respeitar minimamente a cultura local.
Curiosamente, pedir aos imigrantes muçulmanos que respeitem a nossa cultura, isso, é inaceitável.
Parece que a Esquerda parece defender o denominador mínimo comum, não apenas na economia, mas também na cultura: quanto mais rasteiro, melhor. Respeitem-se os intolerantes, ataquem-se os progressistas.
Como liberal social, considerando-me uma pessoa de centro (eventualmente centro-esquerda?) não posso deixar de lamentar a degenerescência do espaço socialista. Já há muito que perdeu o internacionalismo. De há uns anos para cá, está a perder o feminismo. É caso para perguntar What's Left?
Nota final: pergunta Mariana Canotilho onde andam os liberais quando precisam deles. Os liberais andam tão confusos quanto todos os outros grupos políticos. A minha experiência de debate político sobre este tema ao nível internacional (aliás, o que a seguir descrevo é produto de um debate bastante recente onde pude constatar isto mesmo) diz-me que as diferenças resultam mais da pluralidade de histórias e culturas europeias que das ideologias. Os liberais escandinavos são tão relativistas e tão multiculturalistas quantos os socialistas e os conservadores escandinavos. O seu passado pacífico fá-los pensar que a religião não é uma coisa assim tão nociva. Pelo contrário, os liberais do Benelux, países que conhecem o catolicismo de perto, bem como as lutas religiosas entre várias seitas, são bastante mais universalistas, condição que partilham com os socialistas (não tanto os conservadores, pelo menos nos Países Baixos; na Bélgica já não há conservadores, por isso é difícil dizer).
Não é por acaso, Mariana, que em França ou em Espanha as pessoas querem impedir o véu; não é por acaso que no Reino Unido ou na Noruega haja raparigas de ascendência muçulmana que são mortas em crimes de honra e toda a gente ache normal. É que nós, aqui nos países de tradição católica, passámos séculos a morrer na cruz. Passámos séculos a lutar contra a opressão religiosa. Não estamos dispostos, agora que amordaçámos o Vaticano, a deixar que meia dúzia de imigrantes nos tirem aquilo que nos custou tanto a ganhar.