quinta-feira, 15 de julho de 2010

O que eu gosto do feminismo socialista

Eu sou feminista. Não considero que o feminismo seja necessariamente uma colecção de disparates pós-modernos de linguagem PC. O feminismo pertence a uma tradição radical, de Esquerda, de libertação do indivíduo. O feminismo pertence a uma tradição anti-clerical, de crítica às sociedades patriarcais que dominam os países de religião abraâmica (e não só, mas fiquemo-nos por aqui).

Não posso por isso senão ficar boquiaberto quando vejo que, nesta Europa que conhece hoje o seu mais feliz período de liberdade (e por isso, talvez o seu último antes de regressar às trevas religiosas) a Esquerda, ao mesmo tempo que critica a desigualdade salarial entre homens e mulheres (17,6%, um crime; questiono-me se é nas mesmas profissões), acha aceitável a assunção pública da inferioridade moral das mulheres.

Pergunto-me: se fosse a Igreja Católica a decidir que todas as mulheres deviam cobrir-se da cabeça aos pés, será que a Esquerda reagiria da mesma forma?
Pois, a resposta é simples, não é?
No entanto, criticar uma "tradição" muçulmana (que, na verdade, nem é assim tão tradicional quanto isso) é sinal de intolerância.

A questão impõe-se: mas a enxurrada de proibições é solução ou agrava o problema (isolando, por motivos vários que não vou aqui desenvolver, as mulheres afectadas)? Desconfiemos das respostas simples. O mero véu é para mim nojento. Sim, dá-me nojo ver uma mulher com um véu religioso. Mas não apresenta, normalmente, perigo. Já os véus que cobrem toda a face, e pior ainda, a burqa, colocam reais problemas de segurança.

Há outras questões paralelas que poderíamos colocar. Ao fim e ao cabo, o Ocidente, essa organização de malfeitores, não vai à Arábia Saudita dizer como eles se devem comportar. Os ocidentais sabem que quando vão a esses países têm de tomar especiais cuidados - e de respeitar minimamente a cultura local.
Curiosamente, pedir aos imigrantes muçulmanos que respeitem a nossa cultura, isso, é inaceitável.

Parece que a Esquerda parece defender o denominador mínimo comum, não apenas na economia, mas também na cultura: quanto mais rasteiro, melhor. Respeitem-se os intolerantes, ataquem-se os progressistas.

Como liberal social, considerando-me uma pessoa de centro (eventualmente centro-esquerda?) não posso deixar de lamentar a degenerescência do espaço socialista. Já há muito que perdeu o internacionalismo. De há uns anos para cá, está a perder o feminismo. É caso para perguntar What's Left?




Nota final: pergunta Mariana Canotilho onde andam os liberais quando precisam deles. Os liberais andam tão confusos quanto todos os outros grupos políticos. A minha experiência de debate político sobre este tema ao nível internacional (aliás, o que a seguir descrevo é produto de um debate bastante recente onde pude constatar isto mesmo) diz-me que as diferenças resultam mais da pluralidade de histórias e culturas europeias que das ideologias. Os liberais escandinavos são tão relativistas e tão multiculturalistas quantos os socialistas e os conservadores escandinavos. O seu passado pacífico fá-los pensar que a religião não é uma coisa assim tão nociva. Pelo contrário, os liberais do Benelux, países que conhecem o catolicismo de perto, bem como as lutas religiosas entre várias seitas, são bastante mais universalistas, condição que partilham com os socialistas (não tanto os conservadores, pelo menos nos Países Baixos; na Bélgica já não há conservadores, por isso é difícil dizer).
Não é por acaso, Mariana, que em França ou em Espanha as pessoas querem impedir o véu; não é por acaso que no Reino Unido ou na Noruega haja raparigas de ascendência muçulmana que são mortas em crimes de honra e toda a gente ache normal. É que nós, aqui nos países de tradição católica, passámos séculos a
morrer na cruz
. Passámos séculos a lutar contra a opressão religiosa. Não estamos dispostos, agora que amordaçámos o Vaticano, a deixar que meia dúzia de imigrantes nos tirem aquilo que nos custou tanto a ganhar.

PIGSpolitics: as Legislativas de 2011 e a derrota do PS

What these people fail to realize is that the various measures they suggest are not capable of bringing about the beneficial results aimed at. On the contrary they produce a state of affairs which from the point of view of their advocates is worse than the previous state which they were designed to alter. If the government, faced with this failure of its first intervention, is not prepared to undo its interference with the market and to return to a free economy, it must add to its first measure more and more regulations and restrictions. Proceeding step by step on this way it finally reaches a point in which all economic freedom of individuals has disappeared. Then socialism of the German pattern, the Zwangswirtschaft of the Nazis, emerges.
Ludwig von Mises, Planned Chaos


Ferro Rodrigues afirma que não é preciso ser bruxo para saber que haverá eleições antecipadas. O segundo Governo Sócrates vai cair - e, posso acrescentar, vai cair quase tão mal quanto caiu o segundo Governo Guterres.

O final do primeiro Governo Sócrates já nos fazia adivinhar o descontrolo que se seguiria. Muitos disseram que a crise foi uma bênção para os socialistas. A um ano das eleições poderiam, a coberto de estímulos à economia, começar a esbanjar dinheiro em eleitoralismos.
Honestamente nunca percebi como poderia isso ser benéfico para os socialistas. O que levou Sócrates à ribalta não foi o populismo. Foi uma capa de seriedade. Depois do circo em que se tinha tornado a coligação conservadora, o país queria (ou pelo menos aparentava querer) consistência, estabilidade, reformas. E o défice tinha de baixar. Poucas pessoas se opuseram seriamente, nos primeiros dois anos, às medidas de contenção orçamental.

Claro que o país aparentava querer seriedade, porque as corporações (médicos, advogados, juízes, professores) sabem que é com meias tintas que os privilégios se mantêm incólumes. Mas alguma coisa estava a ser feita e os índices de popularidade do primeiro ministro, do governo, do PS, eram altos.
A segunda metade do governo (2007-2009) foi um desastre. O défice disparou para níveis inauditos. E Sócrates continuava crente que era com investimento público que o país entrava nos eixos. Mas não entrou, e continua a não entrar.

Não fosse o Euro e a UE, o país já teria entrado em bancarrota. Felizmente, o chicote alemão está a obrigar o governo a fazer marcha atrás. A tentação de governos irresponsáveis é somar, a um erro inicial, um erro mais para corrigir esse erro e assim sucessivamente.
Não quero dizer que, conscientemente, os portugueses puniram o PS em 2009 e punirão ainda mais em 2011 pela sua irresponsabilidade orçamental e pela sua má política económica. Mas há uma conjunção de factores arrasadores para o governo:
- O investimento público não cria riqueza mas aumenta a despesa;
- Mais impostos e menos riqueza é uma dupla carga que ninguém pode apreciar;
- E os europeus não estão dispostos a suportar todas as imbecilidades da Europa do Sul - pelo que exigiram medidas drásticas para solucionar o problema do desequilíbrio orçamental.

Em vez do caminho alternativo de contenção orçamental e corte de impostos (sobretudo IRC) no início da crise, o governo preferiu gastar todo o dinheiro num espaço de um a dois anos.
Deviam saber que o mal se faz de uma só vez e o bem pouco a pouco. Com as opções tomadas, Sócrates dedica-se agora a contas de merceeiro, vendo onde pode cortar. O mal vai arrastar-se por muitos anos, quando Sócrates já só for um fantasma do passado.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Jonathan Wolff on Nozick’s Utopia

Jonathan Wolff on Nozick’s Libertarian Utopia

http://world.std.com/~mhuben/wolff_2.html

Wolff’s critique of Nozick’s libertarian utopia escapes the typical Marxist centralist ideas. He desires “to argue that the critics have exaggerated their case against Nozick” – but he also says that in the end Nozick cannot answer all its critics, and thus we must adopt their position. However, this seems a pretty unfair option, considering several things. First of all, any theory will find an immense amount of opposition if it has any intellectual relevance. Affirming that any theory has managed or will in the future manage to answer satisfactorily all objections is quite an immodest pretension. Specially, and secondly, because there are different kinds or arguments. G.A. Cohen’s perspective[1] is certainly different from Murray N. Rothbard’s[2]. This would also demand some clarification from Wolff (and indirectly, he does so): to which one of the critiques does he want to give the privilege of being the winner (not for having proposed a better alternative, an alternative that would be more resistant to factual or theoretical critiques, but only because Nozick did not answer all the objections).

Finally, and more importantly, the reason for which Wolff says Nozick fails (in the end, its utopia would lose diversity by slowly falling into a mere free market system) is some kind of a pyrrhic argument that doesn’t see the basic point of Nozick (the Individual as the central element), evaluating him from a side-characteristic of its system (diversity) and that in the end denies the ability of people to make their own choices. If the result of individual choices (of individual free choices, so, free from fraud and violence) is a radical free market system (or “pre-welfare-state capitalism” as Jonathan Wolff puts it) then a justification must be provided to limit individual choices. Saying that the victory of a given social system is the proof of its wrongness can hardly be a valid argument against it. If anything, it would be a good reason to endorse such a system.

So the first way of criticising such system is just criticising the very idea of freedom and rationality: people have limited rationality, are incapable of doing the good choices and thus should not be free to decide on how to live. This is the bottom line of any critique of capitalism in a broad sense (independently of the specific kind of state – minimal state, welfare capitalism, etc. – is actually defended to keep such economical system). Nevertheless, it is a challenge to find any contemporary political philosopher who would, even if believing in it, be so honest to make such a statement. The alternative is breaking the circle by picking on the libertarian proviso: are individuals in a free market system actually free from fraud and violence?

This entails a whole different discussion, but that is not the path followed by Wolff. What he does is following Peter Singer’s[3] finding that communities who desired to have strong redistributive policies would, without limitations on the right to exit and the right to enter (nozickian important principles, specifically the first one) crumble down in the result of two opposing forces. The richer would flee, impoverishing the community by denying it its resources, the poorer would flood it, impoverishing it even more by consuming the remaining wealth.

The previously noted alternative (a discourse on fraud and violence) is the usual Marxist argument: capitalist system is grounded on exploitation. Even if intellectually appealing, and given that practical variants of Marxist thought have already had the opportunity of being implemented (and failed miserably in what concerns fraud and violence whenever and wherever they existed) the proper way of deconstructing the foreseeable result of nozickian utopia (“nineteenth century capitalism”, according to Wolff) is saying why nineteenth century capitalism is so bad. Popper’s falsifiability would be the way out, if the critiques of Nozick were not generally so adverse to it: nineteenth century capitalism is bad because, as all alternatives to more regulated forms of capitalism, it just did not work and was thus substituted.

The problem with such conclusion is that it has a mutual-destruction result: it destroys the post-utopia nozickian world, but it also annihilates most of its critiques. The diversity scope of possible political systems is incredibly narrower. The question moves from ‘Is capitalism good or bad’ and from ‘Is regulation acceptable’ to ‘How much regulation do we need in a capitalist system?’



[1] Cohen, Gerald Allan. 1995. Self-Ownership, Freedom and Equality. Cambridge: Cambridge University Press.

[2] Rothbard, Murray N. 1977. Robert Nozick and the Immaculate Conception of the State. Journal of Libertarian Studies, 1:45-57.

[3] Singer, Peter. 1982. The Right to be Rich or to be Poor, in J. Paul (ed.), Reading Nozick. Oxford: Basil Blackwell.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Viva o catolicismo

O Vaticano atacou o filme Avatar por apresentar a natureza não como uma criação, mas como uma entidade divinizada.
Há pobreza, guerras, violência, fome, terramotos.
Mas o Vaticano não encontra melhor para fazer do que atacar filmes.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Argumentações diferentes, preconceitos iguais

Na sequência do meu post o deputado João Almeida respondeu-me. Descobri que tanto ele como o Michael Seufert, também deputado dos Jovens Populares, fundamentam o.s seus votos no blogue "Da Última Fila". João Almeida afirma que se trata de uma questão jurídica (portanto, alguém que diz que ao Estado nada confia, confia afinal na definição pelo Estado de uma realidade social fundamental - os meus parabéns pela cambalhota argumentativa) e Michael Seufert, pelo contrário, afirma que se trata de uma questão pré-estatal e até (sacrilégio!) pré-religiosa.

Não posso deixar de notar que se trata de duas argumentações completamente díspares. Entre si e, também, daquilo que se tem lido da maior parte dos opositores ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. A única coisa que as une é mesmo, sejamos honestos (e já sei que vou ser acusado de ser intolerante e politicamente correcto, ou politicamente incorrecto, ou seja lá qual for o chavão que está na moda por certas e determinadas bandas), o preconceito.

E voltamos à polissemia (e com isto vão dizer outra vez que se trata de "filosofia complexa"):
  1. preconceito porque se trata de argumentos que não são justificados nem explorados até às suas consequências últimas. Já expliquei o problema do argumento de João Almeida, que não se coaduna com a sua alegada (e suspeito, é mesmo só alegada) desconfiança visceral face ao Estado. Já Michael Seufert não explica por que motivo se dá legitimidade ao Estado ou às religiões para emitirem regras relativamente a uma realidade que as precede. Acaso o Estado legisla sobre se o a Terra gira à volta do Sol ou o contrário (bom a Igreja já o fez, mas adiante)?
  2. preconceito, enfim, por aquilo mesmo que estão a pensar, por pura discriminação em relação às minorias sexuais. Eu normalmente tento evitar este tipo de abordagens; para mim, nós somos livres de nos darmos com quem quisermos. Ninguém é obrigado a gostar nem a dar-se com gays ou lésbicas. Mas ninguém tem o direito de lhes retirar um centímetro dos seus direitos, ou seja, das suas liberdades que não limitam a liberdade de ninguém mais. E não, não estou a dizer que os dois deputados não gostam de gays e lésbicas (isso seria difícil num partido com a demografia do CDS). A questão é que é menos preconceituoso aquele não quer ter amigos homossexuais mas não se opõe ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, que o contrário.
E espero que perceber por que motivo o digo não seja demasiado complexo. Isso será mau sinal.

CDS: retórica liberal e sofística conservadora

No debate sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo afirmou o deputado João Almeida que a função do Estado não é proporcionar felicidade. João Almeida tem razão. Ele leu alguns autores liberais e decorou bem a frase. No entanto, não percebeu nada do significado e não sabe aplicar esta ideia ao concreto.
Para demonstrá-lo vou analisar o conceito de felicidade nas suas duas possíveis acepções: a puramente individual (ou ética) e a social (ou moral).


De um ponto de vista ético, das escolhas que compõem o ethos ou carácter de um indivíduo, qualquer intromissão do Estado é nociva na medida em que é impossível um poder centralizado abarcar todos os conceitos de felicidade existentes, cujo número é, no limite, igual ao número de indivíduos que compõem uma dada sociedade. De facto, aqui a felicidade assume o sentido mais prosaico, ou seja, a felicidade aqui diz respeito ao gozo, ao prazer e à ausência de dor e isto de uma forma continuada. Sucede que nenhum Estado pode proporcionar aos seus cidadãos uma tal condição sem causar ainda mais infelicidade e sem impôr uma visão unitária de felicidade (aquilo que, como veremos, corresponde à felicidade em sentido moral). As variedade de conceitos de felicidade e de fontes de infelicidade são tão vastas que nenhuma soma de recursos poderia jamais cobrir os primeiros nem exaurir as segundas.
A única coisa que o Estado pode pois fazer em relação à felicidade individual é remover as barreiras impedem cada indivíduo de ser feliz, desde que a sua felicidade não colida com a de outrem. É justamente por isso que o liberalismo sempre pugnou por leis mais abstractas. Excesso de leis implica uma tentação de controlo da realidade que não é nunca possível: ela é dinâmica e caótica, tem uma ordem descentralizada que não se compadece das tentativas de controlo por parte de centros de poder.
Aplicando esta ideia ao caso dos casamentos entre pessoas do mesmo sexo, o que foi feito foi aumentar o nível de abstracção da lei, removendo uma limitação que impedia alguns de seguirem o seu próprio conceito de felicidade individual; a remoção dessa limitação, por outro lado, não implica um ataque à liberdade de outros indivíduos (se no seu conceito de felicidade não couber casarem-se com pessoas do mesmo sexo, apenas têm de não se casar com pessoas do mesmo sexo).


É o segundo conceito que realmente é problemático; a felicidade moral não é já a felicidade como gozo de prazeres físicos ou materiais, mas a felicidade como bom ordenamento de uma sociedade. O que João Almeida defende, ao contrário do que as suas palavras poderiam fazer crer, é um conceito de felicidade moral, ou seja, uma moral substantiva; e pretende defendê-lo impondo-a a todos os demais indivíduos. Vou pôr de parte a constatação de que o Estado português é laico e que portanto as suas leis não dependem de qualquer religião. A argumentação absoluta e profundamente conservadora de que o casamento nasce da tradição cristã e católica (o que, ademais, é um perfeito disparate a todos os níveis, começando pelo histórico e antropológico) denuncia que o que João Almeida pretende é subjugar toda a sociedade portuguesa à felicidade moral católica.

Qualquer liberal deve saber que jamais a “tradição” é um bom argumento. O liberal não labora mentalmente nas ficções culturalistas e historicistas. O liberal, falando de política, olha sempre a “tradição” com desconfiança porque conhece-lhe as tonalidades totalitaristas. (e mesmo quando a refere de forma positiva, como Hayek faz, é para sublinhar a dinâmica humana, a nossa capacidade de adaptação e aprendizagem de melhores e mais justas regras). O liberal argumenta sempre na base do universal como composto de particulares, em que cada particular é tão digno quanto qualquer outro (e por isso mesmo as regras devem ser universais, abstractas e imparciais). O liberal jamais pega num particular (numa “tradição”, numa moral, numa ideia totalizante de sociedade) e o transforma num universal.


Contrariamente ao que João Almeida possa pensar é ele quem entende que o Estado deve zelar por um conceito de felicidade. Para terminar e ser absolutamente claro, se o Estado não pode tentar fazer-nos felizes, também não tem o direito de nos fazer infelizes. Muito menos em nome de um qualquer modelo concreto e previamente imposto do que é uma boa sociedade (como é o caso da moral católica).