Para demonstrá-lo vou analisar o conceito de felicidade nas suas duas possíveis acepções: a puramente individual (ou ética) e a social (ou moral).
De um ponto de vista ético, das escolhas que compõem o ethos ou carácter de um indivíduo, qualquer intromissão do Estado é nociva na medida em que é impossível um poder centralizado abarcar todos os conceitos de felicidade existentes, cujo número é, no limite, igual ao número de indivíduos que compõem uma dada sociedade. De facto, aqui a felicidade assume o sentido mais prosaico, ou seja, a felicidade aqui diz respeito ao gozo, ao prazer e à ausência de dor e isto de uma forma continuada. Sucede que nenhum Estado pode proporcionar aos seus cidadãos uma tal condição sem causar ainda mais infelicidade e sem impôr uma visão unitária de felicidade (aquilo que, como veremos, corresponde à felicidade em sentido moral). As variedade de conceitos de felicidade e de fontes de infelicidade são tão vastas que nenhuma soma de recursos poderia jamais cobrir os primeiros nem exaurir as segundas.
A única coisa que o Estado pode pois fazer em relação à felicidade individual é remover as barreiras impedem cada indivíduo de ser feliz, desde que a sua felicidade não colida com a de outrem. É justamente por isso que o liberalismo sempre pugnou por leis mais abstractas. Excesso de leis implica uma tentação de controlo da realidade que não é nunca possível: ela é dinâmica e caótica, tem uma ordem descentralizada que não se compadece das tentativas de controlo por parte de centros de poder.
Aplicando esta ideia ao caso dos casamentos entre pessoas do mesmo sexo, o que foi feito foi aumentar o nível de abstracção da lei, removendo uma limitação que impedia alguns de seguirem o seu próprio conceito de felicidade individual; a remoção dessa limitação, por outro lado, não implica um ataque à liberdade de outros indivíduos (se no seu conceito de felicidade não couber casarem-se com pessoas do mesmo sexo, apenas têm de não se casar com pessoas do mesmo sexo).
É o segundo conceito que realmente é problemático; a felicidade moral não é já a felicidade como gozo de prazeres físicos ou materiais, mas a felicidade como bom ordenamento de uma sociedade. O que João Almeida defende, ao contrário do que as suas palavras poderiam fazer crer, é um conceito de felicidade moral, ou seja, uma moral substantiva; e pretende defendê-lo impondo-a a todos os demais indivíduos. Vou pôr de parte a constatação de que o Estado português é laico e que portanto as suas leis não dependem de qualquer religião. A argumentação absoluta e profundamente conservadora de que o casamento nasce da tradição cristã e católica (o que, ademais, é um perfeito disparate a todos os níveis, começando pelo histórico e antropológico) denuncia que o que João Almeida pretende é subjugar toda a sociedade portuguesa à felicidade moral católica.
Qualquer liberal deve saber que jamais a “tradição” é um bom argumento. O liberal não labora mentalmente nas ficções culturalistas e historicistas. O liberal, falando de política, olha sempre a “tradição” com desconfiança porque conhece-lhe as tonalidades totalitaristas. (e mesmo quando a refere de forma positiva, como Hayek faz, é para sublinhar a dinâmica humana, a nossa capacidade de adaptação e aprendizagem de melhores e mais justas regras). O liberal argumenta sempre na base do universal como composto de particulares, em que cada particular é tão digno quanto qualquer outro (e por isso mesmo as regras devem ser universais, abstractas e imparciais). O liberal jamais pega num particular (numa “tradição”, numa moral, numa ideia totalizante de sociedade) e o transforma num universal.
Contrariamente ao que João Almeida possa pensar é ele quem entende que o Estado deve zelar por um conceito de felicidade. Para terminar e ser absolutamente claro, se o Estado não pode tentar fazer-nos felizes, também não tem o direito de nos fazer infelizes. Muito menos em nome de um qualquer modelo concreto e previamente imposto do que é uma boa sociedade (como é o caso da moral católica).
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