terça-feira, 20 de maio de 2008

Ainda a religião e o desencantamento do mundo

Ainda a respeito deste post...

Afirma-se por vezes que a religião emprestou a outras áreas, como a ciência ou o direito, muitas das suas características. E que a moral, por exemplo, nunca na verdade poderá ser dela autonomizada. Ora para mim esta perspectiva está errada porque parte de uma cronologia para tentar extrair uma ontologia. Como se a religião, pela sua anterioridade, fosse naturalmente a mãe de todas as coisas.
Bem pelo contrário, essa anterioridade da religião face à ciência, política e moralidade que as Luzes nos deram (e que resultaram obviamente de um processo a elas muito anteriores) não só não nos autoriza a colocá-la numa posição dominante como nos força a reconhecer a sua debilidade. A religião foi o recurso (e é o recurso) utilizado quando o obscurantismo não nos permite discernir formas não dogmáticas de interpretarmos o nosso mundo, regularmos as nossas relações e guiarmos os nossos actos.


Concretizando, muito rapidamente:

- Em relação à ciência, a religião antecede-a apenas na medida em que a religião serviu, em dado momento da evolução da Humanidade, para explicar os fenómenos naturais. Como os nossos antepassados não dispunham dos instrumentos teóricos e práticos para apoiar o seu discernimento, a sua busca da verdade tomou uma feição religiosa - "sobre"natural.

- Em relação à política e ao direito, o exemplo que dei do sexo é bastante interessante. Uma das razões para algumas religiões serem tão proibitivas em relação ao sexo (e não só: em relação ao vestuário, à alimentação, etc.) tem muitas vezes razões que contextualmente tinham alguma aplicação. Eram conselhos de prudência que se transformaram em dogmas por via consuetudinária e teocrática.

- Em relação à moral, o mesmo se aplica; a acção moral tem uma origem religiosa, ou é a religião uma concretização de um determinado tipo de moralidade, fundada na negação do indivíduo raciocinante? Neste texto falei em "uma ética fundada na única ideia metafísica racionalmente fundamentável (e ainda assim cientificamente não redutível), a liberdade". Nas entrelinhas reporto-me à obra de Kant, que na Crítica da Razão Prática (e também na Crítica da Razão Pura) reduz os postulados da razão pura prática a três: imortalidade da alma, a existência de deus e a liberdade. Ora quem chega ao final do livro e se depara com esta afirmação, percebe muito bem o que a liberdade faz lá; mas apenas contextualizando o autor no seu meio e na sua época consegue perceber qual o motivo dos outros dois postulados. E esse motivo é o muito prosaico amor ao seu pescoço.


Na verdade, a única categoria metafísica que é racionalmente sustentável é a liberdade, na medida em que é a única que consegue garantir o desencantamento da ciência (liberdade de pensar, investigar, contrapôr, argumentar), da política (liberdade de expressão, participação política, leis equitativas e neutrais) e da moral (liberdade de agir até ao ponto em que não limitemos a liberdade alheia). E, como a liberdade não é passível de ser fundamentada de outra forma que não seja por si mesma, ou seja, de forma reflexiva e transcendental, é ela que fundamenta tudo o resto.

A religião é apenas uma realidade de que a Humanidade careceu no seu processo evolutivo.

1 comentário:

Héliocoptero disse...

"A religião foi o recurso (e é o recurso) utilizado quando o obscurantismo não nos permite discernir formas não dogmáticas de interpretarmos o nosso mundo, regularmos as nossas relações e guiarmos os nossos actos."

Falando na qualidade de alguém (profundamente?) religioso, posso dizer-te que não me sinto minimamente representado na definição que fazes de religião: não nego nem nunca neguei qualquer explicação científica da realidade por motivos religiosos, não me intrometo em matérias científicas com argumentos de fé e nem sequer procuro atribuir às minhas crenças qualquer valor dogmático, científico, histórico ou factual. A História e a Ciência que o façam por mim onde elas acharem que esse valor existe; as crenças de cada um são isso mesmo - de cada um - tomadas e largadas por vontade própria e não por imposição ortodoxa.

Dito isto, nada disso me impede de ter uma vivência religiosa paralela à explicação racional moderna, tal como o reconhecimento de que as minhas paixões e emoções têm uma origem biológica não é impedimento a uma vivência romântica ou de outro género irracional.

Talvez devesse escrever uma entrada sobre isto...