- Apostasia -
O melhor aluno, em economia, da construção europeia parece ter mordido a mão que o alimentou durante trinta e cinco anos. Ou, pelo menos, é isso que uma plêiade de eurocratas e satélites de menor importância mas não menor arrogância nos tem feito crer.
É um facto que o Não está cheio de enganos. Baseia-se numa campanha muitas vezes de desinformação. Há incorrecções múltiplas e mentiras descaradas. E tudo isso engrossou a fileira dos supostos apóstatas da Europa. Haverá sempre aqueles - nos dois extremos do eleitorado - que nunca serão a favor do projecto Europeu. Sucede que isso não explica como irlandeses que votaram nos conservadores do Fianna Fail e do Fine Gael, nos liberais Progressive Democrats ou no social-democrata Labour e que compõem a esmagadora maioria do povo irlandês pôde votar Não.
Os seguidores dessa pérola do pensamento político democrático, Sérgio Sousa Pinto, sentir-se-ão tentados a secundá-lo na opinião de que sobre questões importantes não deve o povo pronunciar-se. Eis o referendo irlandês como prova. O povo simplesmente não tem capacidade para compreender o que está em causa.
A questão é - "e alguém sabe o que está em causa?" Alguém leu e interpretou o Tratado de Lisboa para se pronunciar (já não digo votar!) com um mínimo de consciência sobre o que está em causa? Quer-me parecer que, exceptuando algumas centenas de cozinheiros do Tratado e outras tantas centenas de desocupados, ninguém o tenha feito. E das duas uma. Ou ele é importante mesmo, e aí tem de ser legível; ou é irrelevante, e então não se percebe porquê tanta indignação com o asterixiano Não irlandês.
- Cobardia -
Se me perguntassem como, caso Sócrates não tivesse descarada e vergonhosamente faltado ao seu compromisso eleitoral de realizar um referendo, votaria eu num referendo sobre o Tratado, eu diria que votaria Sim. Não o diria por convicção, por achar que se estava a erguer mais uma pedra no edifício europeu, ágora de meio milhar de milhão de pessoas. Votaria simplesmente por medo.
A táctica da eurocracia para fazer-nos aceitar tudo o que impõem é simplesmente o medo. Que o projecto pare, que o projecto regrida, que o projecto morra. E a ameaça é menos irreal que o que possa parecer. Um dos benefícios - talvez o principal, o crucial - das Comunidades tem sido o forçar a convivência entre elites dos vários países delas componentes. Elites que décadas antes arrastavam centenas de milhões de pessoas para guerras cíclicas que foram pouco a pouco minando a supremacia europeia sobre o mundo, num processo autofágico absolutamente notável.
A União Europeia é hoje a fonte de rendimentos e uma fonte de prestígio para uma horda de gente que sempre estará entre a elite governante. A diferença é que agora as elites europeias partilham a mesma malga. E, por amor de si, por inconfesso interesse próprio, não lhes conviria que a UE entrasse em perigo. Por detrás do verniz recente do cosmopolitanismo, muita coisa se esconde. Nada que, como europeus, não devêssemos já sabê-lo.
E portanto é por medo dos eurocratas e da sua bestialidade mal contida (e visível nas reacções ao referendo irlandês), por receio que a UE seja posta em perigo e as nossas queridas elites se voltem a dividir e a recrutar-nos para as suas guerras privadas, que eu me inclinaria para o Sim. Mas será que o projecto europeu tem de ficar reduzido a isto, um jogo de chantagens, esse mesmo jogo a que eu estaria disposto a ceder, essa mesmo dança que Lisboa dança, ao inventar opting-outs anglo-polacos precisamente nas matérias que são absolutamente decisivas para a Europa, as questões civilizacionais, a defesa do Indivíduo, esse rapto de todo um continente por uns milhares de burocratas?
- Utopia -
"Felizmente, o que sucedeu em Nice não foi exactamente um desaire. A Europa nunca foi mais Europa do que hoje. O que sofreu um sério revés em Nice foi o europeísmo, a paixão, a utopia, o desejo de uma Europa que não seja apenas uma bem sucedida colecção de egoísmos nacionais, uma outra arrumação do eterno «equilíbrio» intereuropeu, em detrimento de um outro modelo de convivência europeia."
Eduardo Lourenço, "Da identidade europeia como labirinto", in A Europa Desencantada - Para uma mitologia europeia
É estranho ler um texto de 2000 e perceber que em oito anos nada mudou. E era suposto ter mudado. Era suposto que tivessemos hoje um pilar político na nossa casa comum. Mas não temos, e digo mais: a elite europeia não quer que esse pilar exista. O pilar de uma democracia é formado pelos cidadãos. E enquanto os cidadãos não tiverem uma palavra a dizer, mais ainda, enquanto os cidadãos da Europa não se puderem expressar e decidir enquanto cidadãos europeus e não apenas como cidadãos dos seus países, o pilar político europeu será uma miragem, uma espécie de distopia com a qual uma elite de burocratas e políticos profissionais podem ameaçar os cidadãos enquanto espalham regulamentos que denunciam uma febre de controlo panóptico demencial sobre a definição dos caracóis, as dimensões das laranjas e a existência de galheteiros.
Na transição do Tratado Constitucional para o Tratado de Lisboa, o que era absolutamente crucial - a Constituição - ficou pelo caminho. Restou um tratado praticamente igual, pouco menos extenso, muito mais pobre, tão ilegível como e absolutamente imoral pela desprotecção dos indivíduos perante governos nacionais mais belicosos no que aos Direitos Humanos concerne, como o britânico e o polaco.
Eu arrisco dizer que o que está mal não é o excesso de avanço da Europa. É que a Europa simplesmente não avança. E, se podemos não ter lido o Tratado, isso não significa que sejamos estúpidos. Os eurocratas não acreditam nisso, mas é verdade - nós não somos estúpidos. E percebemos que se a Europa marca passo politicamente, mas novos poderes são passados para cima, algo está mal. Há algum plausível motivo para aceitarmos dar mais poder a quem não nos presta contas?
O que falta é mais Europa. Depois de três Nãos de seguida, eu creio que a eurocracia devia meter o Tratado na gaveta e fazer aquilo que há muito deveria ter feito. Enquanto a Comunidade era apenas um espaço de mercado livre, o funcionamento meramente burocrático, a dialéctica neofuncionalista, chegavam perfeitamente. Hoje que a Europa é um espaço que se assume como União também política, tem de ser aquilo que os estados que a compõem são: uma democracia. E assim,
- Que o próximo Parlamento Europeu seja eleito com a incumbência de, conjuntamente com os Governos nacionais (essa dupla característica, a comunitário e a dos estados, não pode desaparecer), redigir uma Constituição;
- Que os europeus votem todos no mesmo dia sabendo que votam todos para algo que vai ter repercussões em toda a União;
- Que uma vez havendo texto, cada povo se pronuncie em referendo;
- E que, agora sim, verdadeiramente livres, os europeus sejam também responsáveis: quem recusar uma tal Constituição terá de ser consequente e abandonar a União Europeia.
7 comentários:
Espreita isto:
http://craobhgalgreine.blogspot.com/
Absolutamente nojento...
É nojento, mas é assim com múltiplas coisas a respeito do Não.
A questão é que enquanto os procedimentos da UE não forem democráticos, a demagogia há-de levar sempre a melhor.
Obviamente não concordo e não percebo a lógica da maior parte dos argumentos aqui ditos a favor do sim.
Menos ainda o argumento de todos a 27 votarem num eventual referendo.
Como é óbvio o argumento Sérgio Sousa pinto de que o "povo" não percebe o tratado, logo deve ser impedido de votar é uma argumento antidemocrático- não deve ser aceite.
Depois a questão do "alguém sabe o que está em causa"?
Esse é logo um problema principal: qual é a honestidade de pedir-se a pessoas que votem SIM a algo que não conhecem nem percebem o que virá a estar em causa?
Colocar as questões no preto/branco dizendo
"ou ele é importante " ou
é "irrelevante"
é uma forma desonesta de argumentação. Involuntária, perece-me mas é.
As coisas não podem ser colocadas argumentativamente dessa forma, perante um tratado que é claramente anti democrático na forma e no conteúdo e nos métodos usados para o tentar aprovar.
Concordo com o argumento do medo, nos sentido em que "votarias por medo".
Mas isso põe outro problema: é legitimo votar com medo? Isso é liberdade?
Como é que um tratado que diz trazer a liberdade à pessoas gera pessoas que ponderam as coisas e votam Sim por medo?
Não é um contra senso nos termos?
O argumento das elites de países que viviam de costas umas para as outras parece-me verdadeiro mas fraco para sustentar o acto de votar-se SIM a um tratado.
Também concordo com a avaliação de que as elites tem medo de perder o tacho.
Deveremos votar "sim" apenas para salvar o tacho das elites?
Creio que não, a Europa terá que ser mais que isso.
Discordo do argumento "a Europa não avança o suficiente".
Já avançou de mais sem qualquer resultado prático.
E volto a dizer que não vejo qual é a utilidade de uma constituição, não vejo qual é a lógica de aplicar federalismo à Europa, a países que todos juntos não tem quaisquer características de estados federados;
e no caso específico de Portugal deveremos claramente verificar exactamente o que é que estamos a fazer dentro da UE, da maneira em que estamos dentro da UE.
Há uma coisa que os adeptos do SIM não entendem.
Existem pessoas que são adeptas da Europa e não querem o "Sim".
Não querem uma federação de estados.
Para criar um modelo político igual aos Estados Unidos ou Brasil já existem os EUA e o Brasil.
A Europa tem que ser outra coisa politicamente.
E isso não passa por Constituições nem pelo alimentar de elites burocráticas em Bruxelas ou jogos do mesmo tipo.
Ou existe uma Europa democrática e autónoma, um espaço livre ou não existe.
Este tratado consagra a existência de uma espaço não livre, formalmente democrático, de um ponto de não retorno em matéria de democracia.
E a última ameaça do post é um jogo arriscado.
Se 7 ou 10 países saírem da União o que fica?
Se perguntarem à Inglaterra ela sai.
Logo ai esqueça-se uma Europa.
Dissidente, houve, há e haverá sempre um certo número de pessoas contra a Europa e a favor da prisão nacionalista. Sendo eu europeísta, não pretendo convencer essas pessoas. Quem for contra a economia de mercado e/ou contra o combate ao racismo e à xenofobia e/ou a favor do fundamentalismo religioso, etc., não é nem será nunca europeísta. E portanto essas faixas do eleitorado não são passíveis de ser conquistadas.
Mas há uma grande faixa de eleitores que, sendo europeístas, não concordam com o modelo absolutamente antidemocrático que temos tido. Esses eleitores, uma vez sendo dado o poder e a liberdade de decidir, votarão pelo Sim. Não acredito que a maioria dos franceses, holandeses e irlandeses sejam neo-nazis nem marxistas. A prova disso é que votam maioritariamente em partidos social-democratas, liberais e conservadores - partidos europeístas, portanto.
A questão é pois a de perceber o que afasta estes eleitores da Europa. A minha aposta é que o que nos (eu também estou nesse pacote) afasta não é a construção europeia em si, mas o seu modelo burocrático e oligárquico.
Quanto à saída da UE, é a consequência natural: se eu sou contra a UE, por que raio hei-de nela ficar? Não podemos ter o melhor dos dois mundos: berrar contra a União, e continuar a usufruir dos seus benefícios. Num cenário de devolução da liberdade aos cidadãos, eles serão não apenas livres mastambém (e emconsequência) responsáveis: quem votar Não, vota pela saída. E aposto em como aí os resultados serão radicalmente distintos.
Igor: pessoas contra.
concerteza que existirão pessoas sempre contra.Mas essas são uma minoria, apesar de tudo( embora a união esteja a esforçar-se por lhes aumentar o número...)
Não concordo muito com a ideia de prisão nacionalista, porque podem existir pessoas nacionalistas que não sejam a favor da UE como ela é, e não sejam também à favor do nacionalismo à puxar para o fascismo,etc..
Acho que uma coisa não invalida a outra.
Quanto à votação, uma grande faixa de eleitores não é de facto comunista nem anti mercado e no entanto detesta esta União. E vota contra.
Afirmas que o modelo burocrático e oligárquico.
Penso que isso só não é. Há questões económicas aqui, nomeadamente a abertura de mercados da maneira como ela é feita.
É muito bonito falar em liberalismo a uma pessoa que perdeu oemprego porque a fábrica em que trabalhava foi deslocalizada para a Hungria ou para a China e depois estar-se à espera que a pessoa apoie a UE.
Não apoia.
Saída da UE: eu não sei se é a consequência natural.
Se as pessoas são contra isto e querem algo diferente disto tal não significa que forçosamente a opção tenha que ser a saída.Mas sim a mudança do que está.
E essa questão da união e dos benefícios tem muito que se lhe diga. Especialmente em economia.
Exemplo: Portugal recebe fundos. Os fundos depois são usados a investir comprando bens e serviços aos países mais ricos da UE que os produzem.
Não há aqui um elemento de engano nisto tudo?
O dinheiro entra e sai sem que o país pelo qual ele passa tenha real desenvolvimento próprio.
O país está condenado a isto?
Não creio que haja assim tão poucos que sejam contra a UE. Bom, pelo menos de boca. Se fôssemos postos na rua, de repente creio que ficaria toda a gente muito assustada (e com razão).
Não me refiro apenas de nacionalismo enquanto fascismo. O PCP é um partido nacionalista, e sendo totalitarista, não é fascista.
O problema, de facto, é esta União não ser democrática. É isso que quero dizer com o post: democratizemos a União, e adoptemos perspectivas europeias, e não esta mesquinhice saloia dos paísezecos; os cidadãos passarão a identificar-se com ela.
A alternativa qual é? Não permitir que a China se desenvolva, como nós já nos desenvolvemos? Subsidiar indústrias que já não funcionam?
A UE nunca vai ser aquilo que o PCP ou o BE quereriam que ela fosse. E portanto, podem lutar o que quiserem. Mas o projecto europeu é, desde o início, um projecto que visa atingir a paz através do livre comércio. Não sou eu que o digo. São os pais da Europa que o defendiam, na linha de pensamento do liberalismo e do iluminismo dos séculos XVIII e XIX. Toda a teoria neofuncionalista, que inspira as Comunidades há 50 anos, parte daqui. Não vale a pena fugir à questão: sem mercado livre, não há paz, não há internacionalismo.
Quanto aos fundos, tudo depende da inteligência de quem recebe os fundos. Os nossos governantes, aqueles que os gastaram em auto-estradas com maiorias de 51%, deitaram tudo a perder. Os irlandeses, não. Azar o nosso. Não vamos culpar Bruxelas da nossa estupidez. Os eurocratas não são flor que se cheire - mas não procuremos bodes expiatórios.
Igor: a maior parte das pessoas que ficaria assustada são as únicas pessoas que tem a perder com "isto".
Quanto à questão nacionalista, eu descarto sempre o pcp. Não é daí que vem o perigo.
Aliás os pcp apenas existe porque é conveniente que exista: há um conveniente símbolo de radicalismo à vista de todos e a partir dessa posição os outros partidos normais podem servir-se desse símbolo para governarem mal, e enquanto o fazem agitam o perigo do pcp.
É um bode expiatório.
Democraticidade da união.
Creio que não chega. Não faz sentido que existam estruturas políticas democráticas e estruturas económicas que não são democráticas e agem economicamente contra a parte política da União.
Uma empresa eu deslozaliza está a fazer quer se concorde com esta acepção quer não se concorde. O resultado final é de facto esse.
Depois quem vai ter que explicar aos desempregados daí resultantes a decisão de deslocalização não são os responsáveis económicos mas sim os políticos.
China e industrias:
Na minha opinião é não permitir que a China se desenvolva.
Não verifico existir vantagem nenhuma em permitir alto desenvolvimento económico a um país que é uma ditadura e que é expansionista.
É um país perigoso e quanto mais se desenvolver mais perigoso é.
Um país que defende uma doutrina militar de guerra assimétrica como a China defende, que se baseia em considerar que tudo é um alvo não pode deixar de ser visto se não como um potencial perigo.
E a questão das industrias obsoletas tem que se lhe diga.
Exemplo: A PAC defende uma indústria obsoleta:a agricultura europeia.
No entanto nenhum projecto político autónomo sério pode passar sem ser auto suficiente em produção agrícola.
Liberalismo do século 17/18.Sobre essa tinha muito a dizer não dá devido à extensão, mas esse é uma grande problema. O liberalismo do seculo 18 a nível económico era mais imperialismo de mercados do que outra coisa.
Países como Portugal não podem jogar esse jogo.
E na questão dos fundos não concordo nada.
Parece-me claro já hoje, que mesmo que a quantidade enorme de fundos que foram recebidos fosse toda bem aplicada, Portugal estaria na mesma com grandes problemas.
Portugal foi comprado com fundos e em troca aceitou desmantelar tudo o que tinha potencial e lhe dava vantagem comparativa.
Dizer que isso é só culpa de quem negoceia é pouco como justificação e mais a mais não devemos ficar conformados com isso.
Concordo no entanto com as criticas a Cavaco. Cometeu erros crassos e gigantes a nível de aplicação de fundos.
Mas lá está: a questão era conter o comunismo do pcp.
A estratégia do automóvel individual e do favorecimento do seu uso era isso mesmo, misturada com o keynesianismo do senhor.
Alguém lhe pediu responsabilidades?
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