Os discursos e os textos e as opiniões que se dedicam hoje a re-definir as fronteiras entre Esquerda e Direita são imensos. Eu próprio volta e meia escrevo algo sobre o assunto. Os textos, se bem que interessantes (quando não não estão envoltos em pré-conceitos do tipo Bons/Maus - mesmo quando o objectivo declarado é ultrapassar essas visões parcialistas, como sucede no texto da Atlântico deste mês de António Carrapatoso*) são normalmente longos. No entanto, uma das melhores formas para hoje estabelecermos, de forma rápida e intuitiva, a separação entre Esquerda e Direita é a utilização da expressão politicamente correcto, especialmente para definir as expressões mais extremadas da Direita (e não tanto para estabelecer fronteiras rigorosas ao centro). De facto, ao contrário do que sucede com a Direita moderada e a Esquerda moderada, a Direita extremada alçou a luta contra esta ideia do politicamente correcto ao estatuto de prioridade número um. Passo a explicar porquê.
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A auto-vitimização quixotesca do actual pensamento conservador renomeado para liberalismo ou libertarismo (à revelia das correntes políticas dominantes no seio do próprio liberalismo) é concomitantemente a demonstração da sua força e a prova do seu falhanço.
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A sua força está na convicção de que são paladinos da liberdade cercados por um pensamento único da tolerância. Esta é a reacção no sentido político da palavra: a oposição aos produtos da Modernidade e em particular a reacção à mentalidade classe média, uma classe que emerge da fusão entre a economia de mercado e o Welfare State (para qual concorreram as opções tomadas pelas forças políticas mais moderadas, tanto do campo socialista, como do liberal, como do conservador). Esta classe média baseia-se numa mentalidade individualista, livre que está da carência económica e da falta de instrução das classes miseráveis de antanho e da ideia de "excepcionalismo" da aristocracia, para quem o individualismo fica para "os melhores" e o colectivismo da ignorância e da pobreza é a cristianíssima chaga que todos os outros merecem suportar. Foi na era dourada da classe média que os jovens baby-boomers fizeram a libertação da mulher ou o fim do segregacionismo. E tem sido essa a mentalidade dominante até aos nossos dias - dominante no sentido em que, de forma reformista, tem tornado vencedora a sua agenda individualista.
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É aqui que entra a lógica do cerco dos reaccionários dos nossos dias. Ninguém é anti-democrata. E ninguém é contra a liberdade. Como poderia isso ser? Pois não foi a mentalidade da medianidade a extirpar qualquer oposição a estas ideias? Portanto já não pode haver ninguém que as renegue. Dialecticamente, a negação da negação nunca é igual à afirmação inicial, e os neo-reaccionários já não podem ser reaccionários: eles inventaram-se novos nomes e novas causas. Os fins que perseguem são os mesmos, se os reduzirmos ao essencial, que motivaram por exemplo os absolutistas, mas obviamente que já não podem defender as mesmíssimas coisas.
Já não são contra a ciência: eles acham que a ciência pode ser guiada pela religião. Já não são pela religião oficial: acham que o Estado tem de integrar a "cultura nacional". Já não são machistas: são pelo direito à vida. Já não são homofóbicos: até têm amigos homossexuais. Já não são racistas: são pelos estudos científicos que provam que os brancos são mais inteligentes que os negros.
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Quem se opõe à sua agenda é apelidado de censor, e chegam a realizar retratos de si próprios sendo agredidos e apelidados de racistas e machistas. De caminho, vão pisando armadilhas relapsas, demonstrando a sua verdadeira natureza ao afirmar coisas como as vantagens de haver uma aristocracia ou apresentando abominações como "a equivalência entre [...] religiões". A sua defesa da liberdade limita-se ao direito de re-afirmar coisas que o fim do nazismo (doutrina que afirmam que pelo menos alguns dos seus opositores seguem) deveria ter enterrado e o seu tenaz ataque ao Estado confina-se a esse politicamente correcto, a essa imposição da tolerância. Não fossem os nossos Estados liberais e defensores da liberdade individual, não fosse, por exemplo, o laicismo dominante, e continuariam tão estatistas quanto sempre foram (e quanto continuam lá no fundo a ser).
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Mas se estes neo-reaccionários têm uma convicção inabalável na superioridade da desigualdade, não apenas prática mas também teórica - coadjuvada por um certo colectivismo moral - o próprio facto de se verem hoje constrangidos a afirmarem-se democratas e muitas vezes liberais demonstra também a sua fraqueza. Já não estamos no tempo da reacção integral, mas de uma reacção parcial, mole, quixotesca não apenas pelo delírio do herói mas também pela derrota final de todos os anti-heróis românticos: uma reacção que se pantomima de libertária para defender a opressão. Uma reacção, em suma, muito politicamente correcta.
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* De facto, Carrapatoso, embora bem intencionado, piora bastante o quadro divulgado pelo Political Compass, substituíndo o eixo Social pelo peso do Estado e o eixo Económico por um eixo Igualitarismo/Livre Diferença. Reduz assim a questão do individualismo à intervenção estatal, como se os indivíduos não pudessem ser oprimidos por outros agentes senão o Estado (e como se o Estado não fosse em certa medida um meio de evitar algumas dessas fontes de opressão); e depois introduz um julgamento prévio com vista a favorecer a Direita, afirmando-a "livre", face à imposição totalitarista e opressora do igualitarismo à Esquerda.
Um julgamento neutral dividiria antes os dois eixos entre dois valores (igualdade e liberdade), o primeiro (económico) variando entre o igualitarismo e o elitismo, com a ideia de "igualdade de oportunidades" ao centro e o segundo aferindo o grau de individualismo (moral).
2 comentários:
Parabéns pelo texto. Excelente!
De facto a melhor descrição que li de uma certa Direita. Parabéns.
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