Esta sexta-feira fui assistir a uma conferência que tinha por título qualquer coisa como Viver a Fé em Sociedades Secularizadas. Estive uns quantos dias a pensar se deveria ir. O título abre caminho a uma visão peculiar da questão, o local era um centro paroquial. No entanto, podia ali haver algo de interessante. Quatro convidados, um pelo judaísmo, um pelo islamismo, outro pelo catolicismo e Helena Matos representando essa coisa a que se chamou na conferência de laicos (e não agnósticos e ateus).
Disse várias vezes que não poderia ir: sairia de lá irritado, mal-humorado, apopléctico, convencido de que pela frente resta-nos apenas um abismo de guerras religiosas e um retorno do fundamentalismo religioso de que só há três décadas nos começámos a libertar. Para além disso, desconfiava que Helena Matos seria uma má representante dos ateus e agnósticos, dado que o seu relativo conservadorismo levá-la-ia a assumir por vezes posições de - não sei como defini-lo, empregarei uma expressão inadequada mas ainda assim a que melhor se aproxima - subserviência face aos crentes em geral, e à religião dominante em particular.
Mas eu não me levo muito a sério - sei que sou um pessimista. Muito humanista, muito "o Homem tem em si a capacidade de superar as suas falhas" mas um pessimista. E por isso fui, esperançado de que a conferência tocasse ou colocasse questões relevantes em estrito respeito por todas as partes.
Está bom de ver - não foi nada disso que aconteceu. O debate começou mal e depois da intervenção de Helena Matos fui-me embora porque não estava para ouvir mais do mesmo.
Para começar as hostilidades, o moderador rezou ao deus "das três religiões monoteístas" - e logo nesse momento me pareceu que tamanha falta de respeito para com a convidada ateia/agnóstica mereceria da minha parte o abandono do local. Mas fiquei.
O representante judeu, pareceu-me, foi o que fez uma abordagem mais fiel ao tema. Os judeus, mais do que ninguém, sabem como viver em sociedades em que a sua religião não é imposta a ninguém. Aprendem a respeitar as dos outros com muito mais facilidade. A sua abordagem foi histórica mas falou também de como ele se sentia enquanto judeu ortodoxo e português e de como o próprio acto da vinda dele à conferência implicou uma separação entre a vertente religiosa e secular - enquanto judeu, ele estava em falta com os seus deveres religiosos por estar ali no dia sagrado (já era noite, o que para os judeus significa que já era sábado, e não sexta-feira).
O representante católico, um padre cujo nome não fixei, cativou com os seus dotes de oratória e com o debitar melífluo da cartilha católica - que vivemos numa sociedade que não respeita a fé, que os católicos são perseguidos, que o laicismo é uma coisa má e que a laicidade "bem entendida" é uma coisa diferente - um auditório que não precisava de ser cativado. Praticamente todos eram católicos praticantes. Foi preocupante a forma como a sua intervenção terminou - afirmando que era bom que houvesse uma "perseguiçõezinhas" como os romanos já tinham feito aos cristãos, para que o catolicismo renascesse. Compreendemos assim a postura da Igreja Católica por exemplo em Espanha. Existe um apelo directo da hierarquia católica aos seus fiéis para que o ambiente de animosidade se crie e se desenvolva. A ICAR sabe que só no seio da violência e da irracionalidade ela pode reconquistar o seu peso. Enquanto a paz, a ciência, a tolerância, forem dominantes, a religião estará sempre condenada a definhar. É preciso haver algum tipo de falha grave na sociedade para que qualquer religião veja as suas fileiras engrossar. E foi preocupante, realmente desesperante, ver uma plateia de gente confortável na vida, petits bourgeois como 90% dos católicos praticantes das Beiras para baixo são, a rir-se boçalmente desse tipo de apelo. Ou estavam anestesiados pelo discurso ou concordam realmente com o apelo. Será que devo começar a procurar armas?
É interessante a separação entre laicismo e laicidade. É que eu também a faço, mas eu não afirmo que a laicidade é o contrário de ser laico, como pretendia o padre. Eu afirmo que laicidade é uma condição (por exemplo, "o Estado é laico") e laicismo uma postura (por exemplo "eu sou laicista", isto é, "eu defendo que o Estado deve ser laico"). Ou, pelo menos, é isso que o dicionário me faz concluir. Presumo, no entanto, que este tipo de honestidade e de correcção semântica nada diga à verborreia retórica jesuítica.
Helena Matos teve exactamente a postura que eu tinha imaginado. Foi razoavelmente assertiva em relação ao islamismo, pôs-se de cócoras perante o catolicismo, lamentou-se da sua ausência de fé, afirmou o conforto de ter um Deus e um Papa (ainda que de uma forma deliciosamente azeda). Criticou o espírito da Revolução Francesa e os excessos da laïcité, elogiando a perspectiva americana mas depois queixou-se das cedências britânica ou canadiana face às religiões (omitindo a questão islâmica, que está sempre ali jacente). Ora, e aqui temos de nos questionar. Serão as experiências canadiana e britânica diferentes da americana? Não! O seu substracto é o mesmo, é a cultura anglo-saxónica. E, como eu já escrevi várias vezes a respeito do multiculturalismo, a abordagem anglo-saxónica tem em si os germes da propagação do fundamentalismo religioso e da destruição da liberdade individual porque há um enfoque não no indivíduo abstracto mas nas comunidades concretas; veremos quais os efeitos no futuro dos Estados Unidos a assunção do criacionismo como uma teoria científica. Uma dica - quando o mundo islâmico começou a proibir a imprensa e a perseguir as ciências, os europeus não ficaram à espera que os muçulmanos ganhassem juízo. Não vejo por que motivo os indianos e os chineses o façam face aos americanos.
No multiculturalismo anglo-saxónico os indivíduos são empurrados para se rotularem como qualquer coisa (brancos, negros, católicos, judeus, muçulmanos, etc.); a luta pela liberdade não se dá por uma consideração a respeito do que é justo, mas por um braço de ferro sobre quem tem poder. Retomando a separação que o lockeano Garton Ash faz, em contraposição à tolerância lockeana temos a tolerância voltairiana. E esta, a tolerância que nasce da liberdade de ser ou não ser o que se quiser independentemente de como ou de onde tivermos nascido e crescido é a única verdadeira. Fez terrível falta na dita onferência alguém que colocasse estas questões e que discutisse não a existência de deus (a Verdade a que todos nos devemos submeter, como disse o padre) nem fizesse um choradinho baseado em cartilhas pré-fabricadas ou visões ideologicamente enviesadas e se preocupasse efectivamente em buscar os mínimos para o overlapping consensus, as regras de convivência basilares entre pessoas que têm a consciência de que, podendo individual ou associativamente guiar-se por concepções de vida boa, não têm o direito de as impôr a outrem. Ou seja, faltou discutir a laicidade. A única coisa que faz sentido discutir neste âmbito.