quarta-feira, 30 de abril de 2008

De igual para igual

Já todos ouvimos e lemos que o Estado tem uma qualquer obrigação de apoiar os diferentes cultos religiosos (pagando aulas de Religião, subsidiando escolas religiosas, construindo igrejas e centros paroquiais, etc.). A teoria que circula a respeito da "sociedade civil" (que apesar de ser "civil" parece que precisa do dinheiro político) e que habitualmente é a forma encapotada de os conservadores defenderem mais privilégios para a Igreja Católica (mesmo que isso implique fazer umas cedências de circunstância a cultos irrelevantes como o muçulmano ou o judeu - esquecendo as igrejas evangélicas, com muitíssimo mais fiéis) vai ter agora de enfrentar um problema grave.

Está em vias de se constituir a Associação Ateísta Portuguesa. Será que agora os defensores da "sociedade civil" subsídio-dependente vão aceitar que a futura Associação também mame da teta estatal ou será que a distribuição de dinheiro de impostos alheios com vista à propaganda ideológica é um couto abraâmico?

Associação Ateísta Portuguesa



Soube agora mesmo através do Penates Publici que está em avançadíssimo processo de constituição a Associação Ateísta de Portugal - AAA.



Quem estiver interessado, siga os links: Informações gerais; Estatutos; Escritura.

terça-feira, 29 de abril de 2008

Honestidade (nenhuma): para rematar

O dia 1 de Dezembro [...] é essencial na nossa história e antecede o 25 de Abril. Sem ele, não seríamos portugueses, [...]. A sua relevância histórica [...] não pode ser medida pela absoluta irrelevância das suas comemorações. Caso em que, se assim fosse, teríamos que concluir pela nossa vontade de integração no nosso país vizinho.

Aqui não sei se estou no domínio da desonestidade ou da simples ausência de reflexão. Vejamos o argumento:

- O 1 de Dezembro é importante, o 25 de Abril também;
- O 1 de Dezembro garantiu a nossa independência;
- Se não considerarmos o 1 de Dezembro como um dia mais importante que o 25 de Abril, então temos de ser pela integração em Espanha.

Ora, eu até tentei encadear a ideia silogisticamente (e todos sabemos como os silogismos se prestam a disparates) mas até isso é impossível. Por algum motivo que me ultrapassa, achar que mais importante que ser português, é ser livre, resulta numa defesa do iberismo.

A conclusão é de tal forma desconexa que deixo ao juízo de cada um a avaliação do mérito ou demérito da mesma.

Honestidade (mas pouca): aprofundando o argumento

Vou aprofundar o que afirmei anteriormente. Como se pode, a partir do primeiro excerto do post Desonestidade concluir que ou AMN anda com dificuldade em fazer-se explicar, ou realmente coloca a nação à frente do indivíduo? Esmiuçando:

O dia 1 de Dezembro (logo eu que sou republicano) [menção irrelevante, como o é o dizer-se que não se é crente quando se está a defender mais privilégios para a Igreja Católica] é essencial na nossa história e antecede o 25 de Abril.
Retenhamos o antecede. Será que a questão é apenas de cronologia? Seria uma estranha forma de hierarquizar os nossos feriados, mas se fosse apenas isso não teria qualquer relevância. Mas...

Sem ele, não seríamos portugueses, não teríamos este país, seríamos outra coisa qualquer
Ora bem, era aqui que eu queria chegar. O ser português é o que está em causa.

e eventualmente nem sequer teríamos tido qualquer tipo de 25 Abril.
Ora, não teríamos o 25 de Abril, mas teríamos outra coisa qualquer. Qualquer outra manifestação da tendência para a liberdade. Essa mesma tendência que qualquer consciência individualista sente e que é absolutamente independente de se ser português, ou espanhol ou qualquer outra coisa. Eu não aspiro a ser livre por ser português mas por ser um ser racional. E a minha qualidade de indivíduo dotado de razão está antes de tudo o resto, antes de qualquer irrelevante manto histórico, cultural, linguístico.

Que Adolfo Mesquita Nunes não o perceba, diz tudo. É uma clivagem ideológica decisiva.

Honestidade (mais ou menos)

Quando escrevi este post inclinava-me para achar que o Adolfo Mesquita Nunes tinha recorrido a uma arte de fuga para minimizar o 25 de Abril, afirmando a superioridade do primeiro de Dezembro. Podia ser, pensei, uma desonestidadezinha a que qualquer pessoa pode ter de recorrer quando está argumentativamente, digamos, à rasca.

Bom, a resposta veio com acusações de desonestidade. É bastante curioso que

E assim foi que, ao fim de múltiplas linhas de artes, manhas e fugas, fiquei um pouco mais esclarecido.

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Log Rolling - por que gostam os conservadores de Obama

A imprensa tem sido extremamente simpática para com Obama e arrasadora para Hillary. Quando digo imprensa, digo também (sobretudo?) a imprensa conservadora, extremamente poderosa e muito politicamente orientada.

Durante algum tempo pareceu-me que seria um embevecimento com alguém que falava em Change. Com um negro. E com um homem que tem um nome muçulmano. (E tudo não mudando em excesso - antes um homem negro que uma mulher branca). Havia qualquer coisa que não batia certo, mas eu estava com dificuldades em perceber porquê.

Se eu tivesse tido uma reflexão um pouco mais sofisticada, teria percebido há mais tempo que se trata de um caso exemplar de log rolling. A capacidade da imprensa influenciar o eleitorado pode estar a servir para levar ao embate um candidato fraco e cheio de pontos fracos que fariam as delícias dos spin doctors republicanos. Obama afogar-se-ia num mar de escândalos e ligações perigosas a racistas negros e terroristas não arrependidos.

Para percebermos um pouco melhor: nos finais da década de 50 e inícios da década de 60 os democratas tentaram fazer passar uma medida tendente a aumentar o financiamento à construção de escolas. Um membro dos Representantes negro, Adam Clayton Powell, pretendeu introduzir uma emenda que excluiria os apoios a escolas segregacionistas. Esta emenda não tinha obviamento o apoio dos democratas do Sul. Se a emenda fosse realizada depois da votação da proposta, seria chumbada (os republicanos e os sulistas votariam contra), mas a proposta em si passaria. Ora, sendo os republicanos contra o investimento na educação, garantiram que primeiro se votasse a emenda, votando a seu favor. A proposta que passou excluía pois as escolas do sul do país; na votação final os democratas do sul aliaram-se aos republicanos e a proposta foi chumbada várias vezes; Powell, de cada vez que ela surgia, propunha a sua emenda. E de cada vez, os republicanos actuavam da mesma maneira: primeiro garantiam a inclusão da emenda; depois votavam contra a proposta.

Com Obama a estratégia é rigorosamente a mesma: atacam Clinton, que sabem ser uma candidata de fibra e sobre quem não há escândalos a desvendar, e protegem Obama. Quando este vencer, será esmagado em dois tempo.

E lá vamos ter mais oito anos de Partido Republicano.

M.A.D.

A UDP defendia o modelo albanês. Sá Carneiro as sociais-democracias escandinavas. Mais recentemente, o exemplo a seguir foi a Irlanda e depois dela, a Finlândia.

No entanto, o que nós temos é um MAD: Modelo Africano de Desenvolvimento.

Vejamos quem são os nossos companheiros em termos de concentração de riqueza nos 10% mais abastados:
#66 Madagascar 28.6%
#67 Portugal 28.4%
#68 Mauritania 28.4%.

Também interessante é que, se os 20% mais ricos concentram 43,4% do rendimento e os 20% mais pobres têm apenas 7,3%, aquilo a que sofrivelmente poderemos chamar classe média (os 60% do meio) têm para si 49,3% do rendimento. A aceitar um valor médio dos salários brutos que instituições como o INE têm dado (cerca de 800 euros) isto significa que o rendimento bruto médio mensal de um português de classe média é de (aproximadamente, dado que estou a fazer contas de forma muito simplista) 657,33 euros.

Se isto não dá vontade de fugir...

Os corredores de fundo correm mais longe

Clinton, who won the Pennsylvania primary last week, has gained ground this month in a hypothetical head-to-head match up with the GOP nominee-in-waiting; she now leads McCain, 50 percent to 41 percent, while Obama remains virtually tied with McCain, 46 percent to 44 percent.

O inevitável começa a acontecer: o discurso de Obama é oco. Encanta nos primeiros minutos e farta nas horas seguintes. Falta saber se yes they (Democratas) can cair na esparrela.

domingo, 27 de abril de 2008

ETT, TT, ETT, TT

Via Arrastão

Solução: Estado

[...] as empresas que empreguem trabalhadores sem contrato a termo verão a taxa social única passar dos actuais 23,75, para 22,75 por cento. As empresas que por sua vez contratem trabalhadores com contrato a termo verão a contribuição para a segurança social passar de 23,75 para 26,75.
Público

"Metade ou mais de metade dos desempregados são pessoas que estavam com contratos a prazo. É por isso justo que as empresas que mais utilizam os contratos a prazo sejam as que pagam mais"."Querem ter mais contratos a prazo? Muito bem, mas pagam mais. E nós sabemos que o incentivo económico é a melhor forma de alterarmos as situações. É por isso que hoje a empresa vai pensar duas vezes", disse, afirmando que o Governo está disponível para negociar a proposta com os parceiros sociais, mas não adiará as reformas.
Público

- À primeira vista parece uma idiotice estatista por pretender manipular o mercado em favor dos contratos sem termo;
- À segunda vista parece mais racional, dado que efectivamente as empresas que contratam trabalhadores a termo certo são fonte de maiores encargos para a Segurança Social (ou seja, quem está contratado a termo certo naturalmente que tem períodos de inactividade que precisam de ser cobertos pelo subsídio de desemprego, o que não sucede quem trabalha há 20 anos no mesmo sítio);
- E à terceira vez volta a parecer uma idiotice estatista porque esta alteração serve apenas para punir as empresas e não para resolver o problema dos trabalhadores.

Em vez de reduzir as taxas nos contratos sem termo e aumentar nas empresas que recorrem a contratos a termo certo, que tal pegar nesse dinheiro e constituir contas-poupança individuais e obrigatórias que fossem entregues ao trabalhador após abandonar a empresa, substituindo o subsídio de desemprego (e evitando as burocracias que ele implica) durante um período de tempo variável (dependendo do tempo de trabalho)?

Mas não. Para o governo socialista, a solução tem de passar pelo Estado: o Estado recolhe o dinheiro do trabalho e depois devolve-o como se de uma esmola se tratasse.

sábado, 26 de abril de 2008

A vida, os prazos e outras falácias

A reforma da lei laboral está a ser bem menos contestada do que no passado as outras revisões do Código de Trabalho o tinham sido. A isso ajuda o facto de o governo ser PS. Não só a opinião pública é normalmente mais mansa com este partido, como também a revisão parece ter em si, apesar de tudo, três das ideias hoje dominantes, tanto à esquerda como à direita.

*

A primeira dessas ideias é a do combate aos recibos verdes. Os recibos verdes são usados de uma forma absolutamente abusiva por muitas empresas e pelo próprio Estado. E cada uma dessas situações é mais grave que outras formas de precariedade, como seja o trabalho temporário. No entanto, não só os recibos verdes apesar de tudo cobrem muitas situações nas quais fazem efectivamente sentido, como são numericamente menos relevantes.

**

A segunda ideia é a de que é preciso formar e qualificar os trabalhadores para os tornar mais aptos a fazer face a um quadro legislativo mais flexível. Ora esta verdade presumida e completamente infundada de que com formação o Paraíso estará ao alcance da nossa mão deveria já estar morta e enterrada. O problema de Portugal não é falta de gente formada. E não é falta de apoios do Estado à formação. Conto um caso para explicar.

Aqui há dois anos li uma reportagem sobre jovens licenciados que tinham partido em busca de oportunidades que cá não encontravam. O melhor exemplo do que vai mal em Portugal, e em particular nas nossas empresas, é dado por uma rapariga de vinte e poucos anos, de Braga, licenciada em Relações Internacionais e que ganhava €475 numa instituição sem fins lucrativos. Farta de ganhar uma ninharia fez as malas e foi para a Irlanda por duas semanas. Em menos de nada conseguiu trabalho, ganhando cerca de €1200 líquidos numa empresa de e-business. Ao fim de poucos meses a empresa fez-lhe a proposta: tirar uma pós-graduação na área numa das universidades da cidade. Ela teria de suportar os €3000 euros das propinas. Se passasse e continuasse na empresa, devolver-lhe-iam o dinheiro. Ela assim fez. Terminada a formação, a empresa deu-lhe efectivamente o dinheiro e aumentou-a dos €1200 iniciais para €1600.

Tudo isto se passou sem Estado à mistura, apenas com o trabalho da rapariga e a honestidade e a aposta nas pessoas da empresa. Ora nada disto poderia acontecer em Portugal. Porquê? Aqui vai:
- Nenhuma empresa portuguesa pedirá nestas circunstâncias menos que licenciatura em engenharia ou gestão/economia como qualificação de acesso;
- Nenhuma empresa portuguesa estaria disposta a celebrar (e muito menos cumprir) um acordo de cavalheiros com um trabalhador;
- Nenhuma empresa portuguesa aceitaria que um trabalhador passasse a ganhar mais por ter procurado e conseguido mais formação técnica;
- Muito menos aceitaria pagar a formação do trabalhador; a solução preferida seria um programa manhoso subsidiado pelo Estado.

***

A terceira ideia que se mantém é a de que os contratos devem, preferencialmente, ser sem termo. Digam-me uma só coisa à face da Terra ou na vida dos homens que não tenha um fim e aí eu poderei ponderar novamente a minha posição, mas até lá parece-me que, se realmente tenho de dizer que um tipo de contrato faz mais sentido que outro, então o contrato mais lógico é o contrato a termo certo. Tudo na vida tem um prazo. Até a própria vida. Para quê então inventar contratos de trabalho eternos?
Mas não quero ir para o outro extremo. Não quero que a lei diga que os contratos a termo certo são melhores que os outros. Porque quais os melhores contratos, isso só as empresas e os indivíduos saberão, casuisticamente, dizer. Não me parece que seja tarefa do Estado dizer que as empresas devem preferencialmente fazer assim ou assado. Deve sem dúvida estabelecer indemnizações por despedimento, indemnizações por caducidade de contrato (e para mim deveria haver ambas as indemnizações) e prazos de aviso diferenciados, consoante as situações* mas deve fugir de qualquer tipo de moralização a respeito das opções de vida dos indivíduos ou de gestão das empresas.
É uma absoluta falácia acreditar que contratos mais longos favorecem o trabalhador**. Para isso é preciso acreditar que o trabalhador tem interesse em estar vários anos no mesmo sítio. E isso está longe de ser óbvio. Eu tenho muito mais poder (e tiro melhores contrapartidas financeiras) em contratos curtos (nos quais eu posso ir-me embora e receber indemnização, forçando a entidade patronal a seduzir-me com melhores condições) que em contratos longos. Neles, por um lado a acomodação leva os indivíduos a passivamente colocarem-se à sombra da empresa e a não procurar melhores oportunidades e por outro a mudança de emprego pode acarretar penalizações financeiras e salariais.

Em suma, o fundamental do que está mal no mundo do trabalho entre nós deve-se a uma questão mais de mentalidade que de lei. Mas se não tivéssemos uma lei tão má, muitas mentalidades desempenariam. A questão é que não vai ser desta que vamos mudar a sério.

_____________________________

* Em contratos sem termo e de longa duração o pré-aviso deve ser dado com maior antecedência e a indemnização por despedimento deve ser, em termos absolutos, maior; em contratos com termo certo e de menor duração o prazo deve ser maior e as indemnizações, em termos relativos, maiores.

** Há uns dias falei com um rapaz que está há oito anos a trabalhar na mesma empresa subcontratado numa empresa de trabalho temporário. Há quatro ficou efectivo por essa empresa e desde então que não tem tido aumentos salariais: ganha 476 euros de salário base desde 2004 e está feliz da vida, não se despedindo porque não quer perder os 8000 euros de indemnização que receberia se fosse despedido.

Patria o Muerte?


Ontem à tarde na Rádio Europa ouvi o Adolfo Mesquita Nunes no programa Descubra as Diferenças dar, a respeito do 25 de Abril, uma das piruetas argumentativas mais espantosas que já tenho lido, ouvido ou visto nos últimos tempos. Rejeitando o dia e as cerimónias como uma sobrevivência do PREC, afirmou que muito mais importante que o 25 de Abril seria, por exemplo, o 1 de Dezembro. Ao fim e ao cabo, é o dia das restauração da independência, que coisa pode haver de mais importante que essa?


Bom, uma míriade de coisas. E que alguém inteligente e que gosta de defender o seu liberalismo não o perceba, não deixa de ser confrangedor.


Em primeiro lugar, eu nunca percebi por que é que em momento algum, mas absolutamente nenhum, o CDS é capaz de aplaudir o 25 de Abril. A cassete do PREC é sempre a resposta, como se o 25 de Abril fosse o PREC. Podem até dizer que o 25 de Abril, sem o 25 de Novembro, não seria nada. E eu e muitos mais concordaremos. Mas o 25 de Abril não foi o PREC. Foi o derrube da ditadura (que por acaso - ou não - era de direita mas que para o caso é irrelevante - ou não) que durante 48 anos oprimiu Portugal. Ora qualquer pessoa ou instituição que rejeite sistematicamente o 25 de Abril está a dizer muito (muito mais que aquilo que gostaria, muito mais que aquilo que admite) a respeito dos seus sentimentos a respeito da ditadura. Já para não dizer que concentrar toda a atenção sobre violações dos direitos, liberdades e garantias que ocorreram durante ano e meio (e de um lado apenas do conflito, como se fosse um período em que havia santos de um lado e pecadores do outro) e esquecer um período bem mais vasto é, vá lá, estranho, direi mesmo, um pouco hipócrita e, enfim, um tanto ou quanto fascizante.


Em segundo lugar, e foi mais isto que me levou a escrever, a tentiva gorada de fugir ao desmascaramento da cassete do CDS por parte da apresentadora do programa com o recurso ao patrioteirismo. Ora, ele, como liberal, deveria ser o primeiro a rejeitar esse tipo de concepções. O que afirmou é que, muito mais importante que viver em democracia, é o país ser independente. Ou seja, e em teoria, poder-se-ia dizer: antes um ditador português que uma democracia estrangeira. Pois eu, felizmente, discordo. Sendo eu anti-iberista, se me dessem a escolher entre integrar Portugal em Espanha ou que o nosso actual regime fosse substituído por uma ditadura, não hesitaria: preferia ser um cidadão de uma Espanha democrática a um súbdito de um tiranete autóctone.


É por isso que o 25 de Abril é mais importante que o 1 de Dezembro: a dignidade do indivíduo vem sempre antes de qualquer outra coisa. Mas isto com certeza deve ser o meu PREC'ismo a falar. A Ala Liberal soma e segue...

domingo, 20 de abril de 2008

A impossibilidade de discutir a tolerância religiosa

Esta sexta-feira fui assistir a uma conferência que tinha por título qualquer coisa como Viver a Fé em Sociedades Secularizadas. Estive uns quantos dias a pensar se deveria ir. O título abre caminho a uma visão peculiar da questão, o local era um centro paroquial. No entanto, podia ali haver algo de interessante. Quatro convidados, um pelo judaísmo, um pelo islamismo, outro pelo catolicismo e Helena Matos representando essa coisa a que se chamou na conferência de laicos (e não agnósticos e ateus).

Disse várias vezes que não poderia ir: sairia de lá irritado, mal-humorado, apopléctico, convencido de que pela frente resta-nos apenas um abismo de guerras religiosas e um retorno do fundamentalismo religioso de que só há três décadas nos começámos a libertar. Para além disso, desconfiava que Helena Matos seria uma má representante dos ateus e agnósticos, dado que o seu relativo conservadorismo levá-la-ia a assumir por vezes posições de - não sei como defini-lo, empregarei uma expressão inadequada mas ainda assim a que melhor se aproxima - subserviência face aos crentes em geral, e à religião dominante em particular.
Mas eu não me levo muito a sério - sei que sou um pessimista. Muito humanista, muito "o Homem tem em si a capacidade de superar as suas falhas" mas um pessimista. E por isso fui, esperançado de que a conferência tocasse ou colocasse questões relevantes em estrito respeito por todas as partes.

Está bom de ver - não foi nada disso que aconteceu. O debate começou mal e depois da intervenção de Helena Matos fui-me embora porque não estava para ouvir mais do mesmo.

Para começar as hostilidades, o moderador rezou ao deus "das três religiões monoteístas" - e logo nesse momento me pareceu que tamanha falta de respeito para com a convidada ateia/agnóstica mereceria da minha parte o abandono do local. Mas fiquei.


O representante judeu, pareceu-me, foi o que fez uma abordagem mais fiel ao tema. Os judeus, mais do que ninguém, sabem como viver em sociedades em que a sua religião não é imposta a ninguém. Aprendem a respeitar as dos outros com muito mais facilidade. A sua abordagem foi histórica mas falou também de como ele se sentia enquanto judeu ortodoxo e português e de como o próprio acto da vinda dele à conferência implicou uma separação entre a vertente religiosa e secular - enquanto judeu, ele estava em falta com os seus deveres religiosos por estar ali no dia sagrado (já era noite, o que para os judeus significa que já era sábado, e não sexta-feira).

O representante católico, um padre cujo nome não fixei, cativou com os seus dotes de oratória e com o debitar melífluo da cartilha católica - que vivemos numa sociedade que não respeita a fé, que os católicos são perseguidos, que o laicismo é uma coisa má e que a laicidade "bem entendida" é uma coisa diferente - um auditório que não precisava de ser cativado. Praticamente todos eram católicos praticantes. Foi preocupante a forma como a sua intervenção terminou - afirmando que era bom que houvesse uma "perseguiçõezinhas" como os romanos já tinham feito aos cristãos, para que o catolicismo renascesse. Compreendemos assim a postura da Igreja Católica por exemplo em Espanha. Existe um apelo directo da hierarquia católica aos seus fiéis para que o ambiente de animosidade se crie e se desenvolva. A ICAR sabe que só no seio da violência e da irracionalidade ela pode reconquistar o seu peso. Enquanto a paz, a ciência, a tolerância, forem dominantes, a religião estará sempre condenada a definhar. É preciso haver algum tipo de falha grave na sociedade para que qualquer religião veja as suas fileiras engrossar. E foi preocupante, realmente desesperante, ver uma plateia de gente confortável na vida, petits bourgeois como 90% dos católicos praticantes das Beiras para baixo são, a rir-se boçalmente desse tipo de apelo. Ou estavam anestesiados pelo discurso ou concordam realmente com o apelo. Será que devo começar a procurar armas?
É interessante a separação entre laicismo e laicidade. É que eu também a faço, mas eu não afirmo que a laicidade é o contrário de ser laico, como pretendia o padre. Eu afirmo que laicidade é uma condição (por exemplo, "o Estado é laico") e laicismo uma postura (por exemplo "eu sou laicista", isto é, "eu defendo que o Estado deve ser laico"). Ou, pelo menos, é isso que o dicionário me faz concluir. Presumo, no entanto, que este tipo de honestidade e de correcção semântica nada diga à verborreia retórica jesuítica.

Helena Matos teve exactamente a postura que eu tinha imaginado. Foi razoavelmente assertiva em relação ao islamismo, pôs-se de cócoras perante o catolicismo, lamentou-se da sua ausência de fé, afirmou o conforto de ter um Deus e um Papa (ainda que de uma forma deliciosamente azeda). Criticou o espírito da Revolução Francesa e os excessos da laïcité, elogiando a perspectiva americana mas depois queixou-se das cedências britânica ou canadiana face às religiões (omitindo a questão islâmica, que está sempre ali jacente). Ora, e aqui temos de nos questionar. Serão as experiências canadiana e britânica diferentes da americana? Não! O seu substracto é o mesmo, é a cultura anglo-saxónica. E, como eu já escrevi várias vezes a respeito do multiculturalismo, a abordagem anglo-saxónica tem em si os germes da propagação do fundamentalismo religioso e da destruição da liberdade individual porque há um enfoque não no indivíduo abstracto mas nas comunidades concretas; veremos quais os efeitos no futuro dos Estados Unidos a assunção do criacionismo como uma teoria científica. Uma dica - quando o mundo islâmico começou a proibir a imprensa e a perseguir as ciências, os europeus não ficaram à espera que os muçulmanos ganhassem juízo. Não vejo por que motivo os indianos e os chineses o façam face aos americanos.

No multiculturalismo anglo-saxónico os indivíduos são empurrados para se rotularem como qualquer coisa (brancos, negros, católicos, judeus, muçulmanos, etc.); a luta pela liberdade não se dá por uma consideração a respeito do que é justo, mas por um braço de ferro sobre quem tem poder. Retomando a separação que o lockeano Garton Ash faz, em contraposição à tolerância lockeana temos a tolerância voltairiana. E esta, a tolerância que nasce da liberdade de ser ou não ser o que se quiser independentemente de como ou de onde tivermos nascido e crescido é a única verdadeira. Fez terrível falta na dita onferência alguém que colocasse estas questões e que discutisse não a existência de deus (a Verdade a que todos nos devemos submeter, como disse o padre) nem fizesse um choradinho baseado em cartilhas pré-fabricadas ou visões ideologicamente enviesadas e se preocupasse efectivamente em buscar os mínimos para o overlapping consensus, as regras de convivência basilares entre pessoas que têm a consciência de que, podendo individual ou associativamente guiar-se por concepções de vida boa, não têm o direito de as impôr a outrem. Ou seja, faltou discutir a laicidade. A única coisa que faz sentido discutir neste âmbito.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

À vol d'oiseau

Dado que não tenho tido tempo para vir ao blogue, entendi descrever a minha visão do mundo relativamente às últimas duas semanas:

Já ninguém ouve falar de Clinton e de Obama, o que é natural dado que o gajo perdeu as eleições com o MDC. No entanto, ele é manhoso e tem andado a tentar apagar a tocha olímpica com a ajuda do Futebol Clube do Porto, que ganhou (a mando de Fernanda Câncio) por 5-3 frente ao Luís Filipe Menezes. Há quem diga que Menezes, apesar de perder em casa e de ter pretendido transformar o partido em empresa, vai ganhar muito à frente de uma (essa sim) empresa de construção civil a quem adjudicou algumas obras quando estava à frente do Ministério da Corrupção Descarada e da Degenerescência Moral, sendo de prever que alguém tão versado em engenharias políticas há-de ser igualmente um grande mestre de arquitectónica de tráfico de influências.

Enfim, creio que o essencial está todo cá.

domingo, 6 de abril de 2008

O Zimbabwe e a Democracia

[...] ainda que a liberdade política seja recusada numa grande parte de África, de cada vez que as circunstâncias o permitiram movimentos de protesto tiveram lugar contra uma tal repressão.

Amartya Sen, A Democracia como Valor Universal

Quando a independência branca da República da Rodésia cedeu o lugar ao Zimbabwe democrático Mugabe, pelo seu assentimento ao Acordo de Lancaster House, teve um papel importante na integração da minoria branca. Durante cerca de vinte anos, e com muitos atropelos pelo meio, limpezas étnicas e um massivo apoio financeiro britânico o país manteve-se razoavelmente estável, pelo menos no contexto africano. De há uns dez anos a esta parte, contudo, o cavalgar demencial do governante tem levado o país à miséria. Primeiro expulsou os brancos. E, quando os brancos saíram, a economia afundou e foi a vez dos negros começarem também eles a fugir.

Enquanto Mugabe apenas matava ndebeles o Ocidente não se importava muito. Quando os trabalhistas britânicos cortaram o financiamento tatcheriano à política de compra de terras pelas elites da ZANU-PF (e não pelos camponeses pobres, conforme tinha sido acordado), as terras começaram a ser ocupadas pela violência e o ódio racial propagou à perseguição dos brancos - aí despertámos. Mas o despertar da população do Zimbabwe só ocorreu quando a inflação chegou aos milhares por cento, o desemprego se generalizou e a prosperidade antiga cedeu o passo a uma miséria ímpar na África Austral de hoje.

Talvez tenham acordado tarde mas nunca é demasiado tarde. Os resultados das eleições não enganam: a maré mudou. Gostaria de ser tão optimista quanto Sen, embora tenha as minhas reservas: a mudança deveu-se ao estômago ou à cabeça? Não sei. Mas sei que concordo com isto:

Na verdade, existem provas esmagadoras demonstrando que o que é necessário para gerar um crescimento económico mais rápido não é um sistema político mais duro, mas um clima económico mais humano.

E disto, que só a democracia pode dar, os zimbabweanos já tinham provado e gostado. E agora querem repetir. Veremos se será possível.

terça-feira, 1 de abril de 2008

Respeitinho, ou o retorno da religião política

Há uns tempos e a respeito das afirmações do arcebispo de Cantuária defendi a tese de que não se tratava de um acto de cobardia de um ocidental face ao islamismo, mas antes de um firmar de uma aliança entre religiões. A meu ver, quanto menos liberdade tivermos para criticar o islamismo mais à vontade se sentirão os conservadores religiosos para nos impôr restrições no que ao cristianismo se refere.

Estas economias de escala que os sectores religiosos pretendem fazer começam a dar os seus frutos no Reino Unido. Um anúncio televisivo a uma marca de produtos para cabelos no qual se combinava elementos religiosos e mulheres voluptuosas foi retirado após os protestos de centenas de cristãos que se sentiram ofendidos.


Observação 1

É preciso ser muito joão-carlos-espadeiro para não perceber que a religião e a liberdade são ontologicamente realidades que se repelem. Desde que os homens tentaram ser efectivamente livres (portanto, desde os séculos XVI a XVIII) até aos dias de hoje praticamente todas as lutas pela liberdade coincidiram - directa ou indirectamente - com uma luta contra a religião, seja em abstracto, seja com um culto dominante em concreto. Essa luta desenvolveu-se em torno do direito de afirmação da individualidade - do direito de cada um crer ou não crer e de, crendo, crer à sua própria guisa.

Durante um curto período parecia ter-se conseguido encontrar um caminho para o equilíbrio - cada indivíduo terá a sua religião e o Estado não se mete nisso. Não é líquido que ele esteja já quebrado. Mas começam a avolumar-se indícios de que as religiões querem recuperar a sua capacidade de opressão sobre o Indivíduo.

Observação 2

Os first-comers ao mundo da tolerância - países anglo-saxónicos, Países Baixos - criaram um modelo de convivência, em particular no mundo anglo-saxónico, fundado em ilhas culturais. O modelo multiculturalista é tributário dessa tradição, que durante séculos permitiu que judeus e cristãos vivessem no mesmo país (situação para a qual o primaz da Igreja Anglicana chamou a atenção) embora isso significasse que cada um tivesse regras próprias, comunitárias. Em sociedades pouco evoluídas é um modelo que pode funcionar.

Em sociedades complexas, contudo, a destruição do Estado de Direito com o pretexto do respeito pelas culturas e pelo desenvolvimento das comunidades é um atavismo de consequências catastróficas. O modelo universalista francês, fundado na cidadania abstracta, é o único que pode funcionar e que nos pode salvar do relativismo que caminha de mãos dadas com este retorno da religião política. Tem defeitos e algum dirigismo estatal (que deveria ser extirpado), mas é a melhor base que temos. E, contudo, até esse está em perigo. Sarkozy está a empenhar-se duramente na promoção de movimentos fundamentalistas islâmicos e de um maior destaque da Igreja Católica. Veja-se a cronologia.