sábado, 26 de abril de 2008

A vida, os prazos e outras falácias

A reforma da lei laboral está a ser bem menos contestada do que no passado as outras revisões do Código de Trabalho o tinham sido. A isso ajuda o facto de o governo ser PS. Não só a opinião pública é normalmente mais mansa com este partido, como também a revisão parece ter em si, apesar de tudo, três das ideias hoje dominantes, tanto à esquerda como à direita.

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A primeira dessas ideias é a do combate aos recibos verdes. Os recibos verdes são usados de uma forma absolutamente abusiva por muitas empresas e pelo próprio Estado. E cada uma dessas situações é mais grave que outras formas de precariedade, como seja o trabalho temporário. No entanto, não só os recibos verdes apesar de tudo cobrem muitas situações nas quais fazem efectivamente sentido, como são numericamente menos relevantes.

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A segunda ideia é a de que é preciso formar e qualificar os trabalhadores para os tornar mais aptos a fazer face a um quadro legislativo mais flexível. Ora esta verdade presumida e completamente infundada de que com formação o Paraíso estará ao alcance da nossa mão deveria já estar morta e enterrada. O problema de Portugal não é falta de gente formada. E não é falta de apoios do Estado à formação. Conto um caso para explicar.

Aqui há dois anos li uma reportagem sobre jovens licenciados que tinham partido em busca de oportunidades que cá não encontravam. O melhor exemplo do que vai mal em Portugal, e em particular nas nossas empresas, é dado por uma rapariga de vinte e poucos anos, de Braga, licenciada em Relações Internacionais e que ganhava €475 numa instituição sem fins lucrativos. Farta de ganhar uma ninharia fez as malas e foi para a Irlanda por duas semanas. Em menos de nada conseguiu trabalho, ganhando cerca de €1200 líquidos numa empresa de e-business. Ao fim de poucos meses a empresa fez-lhe a proposta: tirar uma pós-graduação na área numa das universidades da cidade. Ela teria de suportar os €3000 euros das propinas. Se passasse e continuasse na empresa, devolver-lhe-iam o dinheiro. Ela assim fez. Terminada a formação, a empresa deu-lhe efectivamente o dinheiro e aumentou-a dos €1200 iniciais para €1600.

Tudo isto se passou sem Estado à mistura, apenas com o trabalho da rapariga e a honestidade e a aposta nas pessoas da empresa. Ora nada disto poderia acontecer em Portugal. Porquê? Aqui vai:
- Nenhuma empresa portuguesa pedirá nestas circunstâncias menos que licenciatura em engenharia ou gestão/economia como qualificação de acesso;
- Nenhuma empresa portuguesa estaria disposta a celebrar (e muito menos cumprir) um acordo de cavalheiros com um trabalhador;
- Nenhuma empresa portuguesa aceitaria que um trabalhador passasse a ganhar mais por ter procurado e conseguido mais formação técnica;
- Muito menos aceitaria pagar a formação do trabalhador; a solução preferida seria um programa manhoso subsidiado pelo Estado.

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A terceira ideia que se mantém é a de que os contratos devem, preferencialmente, ser sem termo. Digam-me uma só coisa à face da Terra ou na vida dos homens que não tenha um fim e aí eu poderei ponderar novamente a minha posição, mas até lá parece-me que, se realmente tenho de dizer que um tipo de contrato faz mais sentido que outro, então o contrato mais lógico é o contrato a termo certo. Tudo na vida tem um prazo. Até a própria vida. Para quê então inventar contratos de trabalho eternos?
Mas não quero ir para o outro extremo. Não quero que a lei diga que os contratos a termo certo são melhores que os outros. Porque quais os melhores contratos, isso só as empresas e os indivíduos saberão, casuisticamente, dizer. Não me parece que seja tarefa do Estado dizer que as empresas devem preferencialmente fazer assim ou assado. Deve sem dúvida estabelecer indemnizações por despedimento, indemnizações por caducidade de contrato (e para mim deveria haver ambas as indemnizações) e prazos de aviso diferenciados, consoante as situações* mas deve fugir de qualquer tipo de moralização a respeito das opções de vida dos indivíduos ou de gestão das empresas.
É uma absoluta falácia acreditar que contratos mais longos favorecem o trabalhador**. Para isso é preciso acreditar que o trabalhador tem interesse em estar vários anos no mesmo sítio. E isso está longe de ser óbvio. Eu tenho muito mais poder (e tiro melhores contrapartidas financeiras) em contratos curtos (nos quais eu posso ir-me embora e receber indemnização, forçando a entidade patronal a seduzir-me com melhores condições) que em contratos longos. Neles, por um lado a acomodação leva os indivíduos a passivamente colocarem-se à sombra da empresa e a não procurar melhores oportunidades e por outro a mudança de emprego pode acarretar penalizações financeiras e salariais.

Em suma, o fundamental do que está mal no mundo do trabalho entre nós deve-se a uma questão mais de mentalidade que de lei. Mas se não tivéssemos uma lei tão má, muitas mentalidades desempenariam. A questão é que não vai ser desta que vamos mudar a sério.

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* Em contratos sem termo e de longa duração o pré-aviso deve ser dado com maior antecedência e a indemnização por despedimento deve ser, em termos absolutos, maior; em contratos com termo certo e de menor duração o prazo deve ser maior e as indemnizações, em termos relativos, maiores.

** Há uns dias falei com um rapaz que está há oito anos a trabalhar na mesma empresa subcontratado numa empresa de trabalho temporário. Há quatro ficou efectivo por essa empresa e desde então que não tem tido aumentos salariais: ganha 476 euros de salário base desde 2004 e está feliz da vida, não se despedindo porque não quer perder os 8000 euros de indemnização que receberia se fosse despedido.

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