sábado, 31 de maio de 2008

Pedro Passos Coelho


Apesar da falta de tempo que tenho tido, não queria deixar passar as eleições no PSD sem dizer que Pedro Passos Coelho é provavelmente a única esperança que tenho, de momento, para Portugal. E digo isto sem omitir que, provavelmente, mesmo que ele ganhasse, ainda assim não me sentiria muito inclinado a votar PSD (tudo dependendo das suas propostas em matéria social).

Manuela Ferreira Leite tem a minha simpatia por não ser irresponsável: a questão do défice é crucial. E quem quer que ponha de parte o combate pelo equilíbrio (e, desejavelmente, por um pequeno excedente que permita pagar alguns desvarios das últimas décadas) orçamental não pode ser sério. Diga-se, no entanto, que Ferreira Leite fez parte do último governo de Direita - do qual saímos com uma situação orçamental em nada distinta daquela que tínhamos em 2002.
O problema maior da candidata está na célebre vida para além do défice. Que traz ela de novo? Nada. Que projectos apresenta para o país? Nenhum. Se os tem, a mensagem não passou. E isso já é significativo que baste.

Omito Patinha Antão, que claramente não vencerá. E Santana Lopes, em relação a quem é preciso ser muito destrambelhado ou muito extremadamente direitista para simpatizar. Resta-nos Passos Coelho.

Verdade que ainda não se percebeu em concreto a que liberalismo se refere ele. Mas promete pôr a social-democracia na gaveta, pelo menos ao nível discursivo. Na prática, a social-democracia é o espaço do PS. E mesmo esse, com Sócrates, está vacilante entre tiques estatistas (e portanto socialistas) e uma verdadeira vontade de reformar o país (num sentido liberalizador). Ora é nessa fusão socialismo/liberalismo que vive a social-democracia, da mesma forma que é numa osmose liberalismo/socialismo que vive o liberalismo social*.

Em todo o caso, Pedro Passos Coelho promete não deixar rigorosamente tudo na mesma. Mesmo que as propostas mais radicais fiquem pelo caminho, o consenso mole sobre o Estado, a economia e os costumes pode sofrer algumas guinadas. Em particular no plano económico, estamos a precisar delas. Tudo o que nos aproxime a nível fiscal ou burocrático dos países mais liberais do continente europeu (que mantêm taxas de crescimento, apesar da crise, apreciáveis) será bem vindo. É que, se há tanta coisa má na liberalização económica, não se percebe como os portugueses recomeçaram a emigrar - e não raro para países em que vários tabus foram quebrados.

O PS reforma, mas não reforma o suficiente. O PSD com Passos Coelho poderá reformar exactamente o necessário para invertermos o ciclo de entropia em que entrámos há cerca de oito anos.

Bom, se a minha confiança no candidato é tanta, porquê furtar-me a votar no seu partido, caso ele vença? Portugal é um país de fidalgos. Num cenário como o presente, o Estado é um bom suporte para toda essa fidalguia. Num cenário de liberalização da economia, nada nos diz (bem pelo contrário) que algo mudasse; deixava de ser o Estado, passavam a ser as empresas privadas (como de resto já acontece).
O governo de Sócrates, como é natural, não foge à regra e mantém o mesmo sistema de interesses, partilhado pelo PSD e pelo PP. Nada muda a nível estrutural. Mas tem desenhado políticas consistentes que não abandonam os mais desfavorecidos e a classe média à sua sorte. A intervenção ao nível do salário mínimo é disso o melhor exemplo. O aumento ao ritmo de 5% ao ano tem sido o único garante de aumento salarial para uma faixa crescente de população. De facto, a classe média-média (600 a 900 euros brutos mensais) quando não perde remuneração (por mudar de emprego) mantém-se no mesmo emprego - e com o mesmo salário - anos a fio.

Qualquer política dirigida para a protecção dos mais desfavorecidos (e eu como bom rawlsiano, tenho o princípio de justiça de que qualquer desigualdade é justa apenas se no sentido de favorecer o mais desfavorecido) tem de dar ao SMN um lugar de destaque.
Ora, o que conhecemos de governos PSD são taxas de crescimento extremamente baixas (metade das do PS). E nada nos diz que com Passos Coelho fosse diferente.

Numa das entrevistas que deu, afirmou que o Estado tinha naturalmente um papel fundamental na protecção social. O problema disto é que não explicou como. Não era preciso elaborar muito, apenas explicar em duas ou três questões o que pretendia fazer. No emprego, nas políticas sociais, etc.. Porque eu acredito que não é preciso o Estado ser omnipresente para proteger os mais fracos. E que há formas não estatizantes de gerar mobilidade e até coesão (no sentido de diminuição de diferenças entre ricos e pobre, escandalosamente elevadas em Portugal) sociais. Mas é preciso percebermos se esse é um tema que realmente preocupa quem quer governar, ou se é apenas uma pergunta a que têm de responder de chofre porque já é da praxe. Esta não é uma questão de caridade. É uma questão de justiça. É uma questão ideológica e é também uma questão moral.

Portugal precisa do liberalismo como do pão para a boca. Mas também precisa que esse liberalismo não seja o mesmo conservadorismo de sempre, sempre mascarado para não dizer o seu nome (ora socialismo, ora social democracia, ora liberalismo, conforme as modas da década), mas que seja um liberalismo progressista, social.

Caso Passos Coelho vença o PSD e depois quebre muitos dos tabus que enfermam a esquerda e a direita portuguesas, creio que a sua marcha para vitória em 2009 será imparável. Não creio contudo que isso venha a acontecer. Manuela Ferreira Leite será a mais provável vencedora. Enfim, uma mulher a liderar um partido. Mas vai ser apenas uma senhora para gerir a crise - não sair dela.

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A esse respeito, ver este teste: European Political Ideologies, e em particular as definições de Liberal Social e Social Democrata:


My #1 is:
You are a social liberal. Like all liberals, you believe in individual freedom as a central objective - but you believe that lack of economic opportunity, education, healthcare etc. can be just as damaging to liberty as can an oppressive state. As a result, social liberals are generally the most outspoken defenders of human rights and civil liberties, and combine this with support for a mixed economy, with an enabling state providing public services to ensure that people's social rights as well as their civil liberties are upheld.

My #2 is:
You are a social democrat. Like other socialists, you believe in a more economically equal society - but you have jettisoned any belief in the idea of the planned economy. You believe in a mixed economy, where the state provides certain key services and where the productivity of the market is harnessed for the good of society as a whole. Many social democrats are hard to distinguish from social liberals, and they share a tolerant social outlook.

sexta-feira, 23 de maio de 2008

A religião como questão estética

Em resposta ao comentário do Heliocóptero:

Há uns tempos escrevi neste post: Pela minha parte, creio que a única coisa em que os não-crentes não têm muito para oferecer é na ritualização, na integração social e na dimensão estética, litúrgica.
É precisamente a essa dimensão estética que fica reduzida a religião se aceitarmos explicações científicas paralelas à crença religiosa. E isso não tem nada de mal. Pela minha parte, se conseguisse realmente separar a religião e a ciência, até preferia estar num culto apenas pela questão social e emocional.


Aliás, no post anterior já tinha escrito Aceitar a morte de deus pelo reconhecimento do desencantamento da ciência, da política e da moral é por conseguinte a única forma de reconhecer a liberdade do indivíduo enquanto ser racional. E para tal não é preciso deixar de acreditar em deus. Basta já não o levar muito a sério. Nada que praticamente todos os ocidentais, de resto, já não o façam.
Quando eu afirmo que o que é preciso é não levar muito a sério a crença digo-o precisamente porque as implicações dramáticas da religião no mundo são as científicas, as políticas e as morais.

Se a ligação à religião é apenas uma questão estética, então é apenas uma questão de liberdade individual.

terça-feira, 20 de maio de 2008

Casamentos de Facto



Artigo 1577.º - (Noção de casamento)
Casamento é o contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir legitimamente a família mediante uma comunhão plena de vida.





O artigo DIZ “constituir família mediante uma plena comunhão de vida”.

O artigo NÃO diz “plena de vida”.

Ora o artigo NÃO diz que é a família que é plena de vida (e mesmo se o dissesse era rebuscado vir falar na procriação);o artigo DIZ que a comunhão de vida é que é plena.

Quer-me parecer que duas pessoas que, estando envolvidos numa relação amorosa e decidindo partilhar o mesmo espaço, os mesmos problemas, as mesmas alegrias estão em plena comunhão de vida. Quaisquer duas pessoas que se amem e que vivam em conjunto estão casadas (ou nem tanto, dado que nem todos os casamentos surgem por amor e muitos perdem-no pelo caminho). E estão casadas “de facto”.

O facto de se arranjarem expressões idiotas como “união de facto” para encapotar os (de facto) casamentos homossexuais é apenas uma prova da estupidez de muita gente. Estupidez, de facto.

A ler:

Ainda a religião e o desencantamento do mundo

Ainda a respeito deste post...

Afirma-se por vezes que a religião emprestou a outras áreas, como a ciência ou o direito, muitas das suas características. E que a moral, por exemplo, nunca na verdade poderá ser dela autonomizada. Ora para mim esta perspectiva está errada porque parte de uma cronologia para tentar extrair uma ontologia. Como se a religião, pela sua anterioridade, fosse naturalmente a mãe de todas as coisas.
Bem pelo contrário, essa anterioridade da religião face à ciência, política e moralidade que as Luzes nos deram (e que resultaram obviamente de um processo a elas muito anteriores) não só não nos autoriza a colocá-la numa posição dominante como nos força a reconhecer a sua debilidade. A religião foi o recurso (e é o recurso) utilizado quando o obscurantismo não nos permite discernir formas não dogmáticas de interpretarmos o nosso mundo, regularmos as nossas relações e guiarmos os nossos actos.


Concretizando, muito rapidamente:

- Em relação à ciência, a religião antecede-a apenas na medida em que a religião serviu, em dado momento da evolução da Humanidade, para explicar os fenómenos naturais. Como os nossos antepassados não dispunham dos instrumentos teóricos e práticos para apoiar o seu discernimento, a sua busca da verdade tomou uma feição religiosa - "sobre"natural.

- Em relação à política e ao direito, o exemplo que dei do sexo é bastante interessante. Uma das razões para algumas religiões serem tão proibitivas em relação ao sexo (e não só: em relação ao vestuário, à alimentação, etc.) tem muitas vezes razões que contextualmente tinham alguma aplicação. Eram conselhos de prudência que se transformaram em dogmas por via consuetudinária e teocrática.

- Em relação à moral, o mesmo se aplica; a acção moral tem uma origem religiosa, ou é a religião uma concretização de um determinado tipo de moralidade, fundada na negação do indivíduo raciocinante? Neste texto falei em "uma ética fundada na única ideia metafísica racionalmente fundamentável (e ainda assim cientificamente não redutível), a liberdade". Nas entrelinhas reporto-me à obra de Kant, que na Crítica da Razão Prática (e também na Crítica da Razão Pura) reduz os postulados da razão pura prática a três: imortalidade da alma, a existência de deus e a liberdade. Ora quem chega ao final do livro e se depara com esta afirmação, percebe muito bem o que a liberdade faz lá; mas apenas contextualizando o autor no seu meio e na sua época consegue perceber qual o motivo dos outros dois postulados. E esse motivo é o muito prosaico amor ao seu pescoço.


Na verdade, a única categoria metafísica que é racionalmente sustentável é a liberdade, na medida em que é a única que consegue garantir o desencantamento da ciência (liberdade de pensar, investigar, contrapôr, argumentar), da política (liberdade de expressão, participação política, leis equitativas e neutrais) e da moral (liberdade de agir até ao ponto em que não limitemos a liberdade alheia). E, como a liberdade não é passível de ser fundamentada de outra forma que não seja por si mesma, ou seja, de forma reflexiva e transcendental, é ela que fundamenta tudo o resto.

A religião é apenas uma realidade de que a Humanidade careceu no seu processo evolutivo.

Escola pública - o projecto do CDS

Transforme-se este post num projecto de lei, e teríamos algo de muito próximo da proposta do CDS para a área. Salvaguardando o facto de ser apenas um projecto de lei e de poder haver questões escondidas das quais possa discordar (e aqui essencialmente falo das escolas religiosas - de resto já principescamente subsidiadas pelo Estado português) - e outras das quais discordo abertamente, como da própria existência de escolas estatais, que seria de evitar pelos motivos que no post expus - trata-se de um excelente ponto de partida.

Alguns excertos:

Pretendemos ultrapassar o velho preconceito que distingue, na substância, escolas privadas, de escolas do Estado: é preciso deixar de distinguir o proprietário para avaliar apenas o serviço que é prestado. Por isso, defendemos que todas as escolas que cumpram as três condições seguidamente descritas, num quadro efectivo de liberdade de aprender e de ensinar, poderão integrar a rede de escolas denominada de “serviço público de educação”, recebendo o respectivo financiamento: i) desenvolvimento de um projecto educativo que inclua o currículo nuclear; ii) satisfação dos requisitos de qualidade do ensino definidos por lei; iii) garantia de acesso em igualdade de oportunidades.

[...]

CAPITULO II
Rede e financiamento

Artigo 4º
(Rede de serviço público de educação)
A rede de serviço público de educação é composta por todos os estabelecimentos de ensino do Estado e de ensino particular ou cooperativo que se sujeitarem às regras de matrícula e financiamento previstas neste diploma.
A rede de serviço público de educação está aberta a qualquer escola que cumpra o estipulado no número anterior, deve assegurar o exercício da liberdade de escolha da escola por parte dos pais e encarregados de educação e sendo definida tendo em consideração as necessidades e possibilidades de oferta educativa.

Artigo 5º
(Financiamento)
O financiamento dos estabelecimentos da rede de serviço público de educação tem por finalidade assegurar o desenvolvimento dos projectos educativos de forma a garantir, a todos os alunos, o acesso à educação, em condições de gratuitidade.
O financiamento de cada estabelecimento de ensino deve ter em conta o número de alunos abrangidos, as necessidades educativas destes, as carências detectadas na avaliação do estabelecimento e o contexto sócio-cultural da respectiva comunidade educativa, nos termos a regulamentar.
Os estabelecimentos da rede de serviço público de educação não podem proceder à cobrança de quaisquer taxas ou prestações de frequência aos alunos, excepto nos casos e dentro dos limites previstos na lei ou no respectivo contrato de autonomia.

[...]

Artigo 10º
(Avaliação dos alunos)
Cada estabelecimento de ensino deve definir, no âmbito da avaliação da aprendizagem, os requisitos e critérios da avaliação interna, formativa e sumativa, dos alunos.
A avaliação externa sumativa dos alunos implica a realização de exames nacionais, pelo menos, no final de cada ciclo de ensino, da responsabilidade do Ministério da Educação.

Artigo 11º
(Currículo)
É dever do Estado aprovar planos curriculares e programas básicos para cada ciclo de escolaridade a respeitar por todos os estabelecimentos de ensino, competindo a cada um destes, no âmbito da respectiva autonomia, a definição dos planos curriculares e programas completos.
Compete a cada estabelecimento de ensino promover a sua oferta extra-curricular.


Artigo 12º
(Docentes)
Aos estabelecimentos da rede de serviço público de educação é reconhecido o direito de contratar directamente o seu corpo docente, de acordo com o regime do contrato individual de trabalho.

[...]

Artigo 14º
(Liberdade de escolha de escola)
Aos pais e encarregados de educação, ou aos alunos quando maiores de idade, é reconhecido o direito de livremente escolherem o estabelecimento de ensino para os seus filhos ou educandos.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

O Ocidente, a Modernidade e a morte de deus

Parece-me interessante a ideia de realizar uma conferência sobre A Ideia da Morte de Deus na Cultura Ocidental (quarta-feira, dia 4 de Junho às 18:30, Anfiteatro IV da FLUL). Temo no entanto que ela reproduza a maioria dos clichés que a discussão (que é tão velha como a frase de Nietzsche, que por sua vez é apenas uma constatação de algo que começou a acontecer de forma institucionalizada desde a Revolução Americana e de forma larvar pelo menos desde Spinoza e Hobbes).

A discussão sobre a morte de deus está normalmente inquinada pela sacralização do conceito de "deus"; a própria utilização da palavra "deus" em maiúsculas (não me posso esquecer de uma carta que à revista Sábado escrevi, sobre Dawkins, com o "d" minúsculo repetido até à exaustão, mas publicada com o "d" maiúsculo não menos exaustivamente). A primeira tarefa para que possa haver uma discussão séria, não marcada pela costumeira desonestidade argumentativa que constitui a colocação das diferentes partes em posições de superioridade e inferioridade, é dessacralizar o conceito; só assim pode ele ser dissecado racionalmente.

Isto feito, partimos então não para a morte de deus (algo que, literalmente tomado, seria pouco melhor que cretino dado que não foi deus que foi morto, mas a ideia de deus que foi arredada das múltiplas esferas da vida humana, tanto na dimensão social quanto na individual) mas para o weberiano desencantamento do mundo.

Este processo revestiu múltiplas formas, umas - raras, mas cruciais porque radicais - morais, outras - débeis e parcelares - políticas e outras - e aí o desencantamento foi dominante - científicas.

Do ponto de vista científico, todos os avanços no saber se deram contra a religião, reduzida ela à sua essência - o dogma. A negação científica de deus está profundamente enraizada, inclusivamente entre os crentes. A recusa dos textos religiosos como relevantes para o progresso do saber e da investigação científica - realidade da qual áreas como a geologia ou a biologia são exemplos extremados - é de facto uma perniciosa forma de ateísmo que contagiou todos os países que se conseguiram desenvolver por via da inteligência. Podemos pensar que há países ricos e nos quais a religião é dominante, como as petromonarquias. Mas nem aí se produz ciência, nem a sua riqueza nasceu da inteligência.

Em todo o caso esta separação, por si só, é débil e superficial. A negação de deus na ciência, mas a sua aceitação na política ou na moral permite não só que subsistam ideias minimalistas a respeito da racionalidade que a reduzam a áreas sérias como a economia, a medicina, etc., como tem permitido o ressuscitar de deus através do criacionismo (muito em voga no protestantismo americano, mas curiosamente com boas e sólidas raízes no catolicismo europeu), envolvendo ideias sem qualquer sustentação científica com um argumentário e uma linguagem pseudo-científicos.

Outra das fraquezas associadas a um certo positivismo é que a alternativa ao minimalismo foi o maximalismo dos totalitarismos do século XX. Diz-se correntemente que se trata de correntes ateias e que as ditaduras ateístas mataram muito mais gente que as ditaduras religiosas. Ora, um pouco de História não mata ninguém. E pode até prevenir algumas mortes, presumo eu. Comparando a Alemanha nazi com a Alemanha da Guerra dos Trinta Anos, temos que a II Guerra Mundial e as purgas que a precederam matou cerca de 12 dos 72 milhões de alemães, ou seja, cerca de 17% da população. Em contrapartida, calcula-se que ao todo a população alemã tenha sido, nas guerras religiosas, diminuída em um terço (em algumas zonas a população reduziu-se em dois terços). Ou seja Hitler conseguiu matar metade dos alemães que católicos e protestantes, em todo o seu fervor religioso, conseguiram. Dir-me-ão que esta é uma forma desumana de encarar o problema, descontextualizada também. De todo. De que outra forma podemos responder à questão do cálculo das mortes, senão, efectivamente, calculando as mortes e contextualizando-as no universo demográfico de cada época?

Pois bem. Mas vou aprofundar a ideia. Estas ditaduras totalitaristas não são de forma nenhuma distintas da religião, excepto na ideia de deus, e mesmo aí algum cuidado é preciso ter. Eles não são o culminar do racionalismo, elas são a própria negação do racionalismo. E não vou argumentar em torno da ideia de Liberdade, trave mestra de toda a arquitectura da Modernidade. Basta-nos dizer que o comunismo e o nazismo tiveram, tal como a religião na passagem do Homem da sua mera condição animal para seres providos de razão, a intenção de explicar o mundo. Fornecer as respostas às questões que afligiam os homens. E tal como a religião, rapidamente se enquistaram no dogma. E até criaram (embora aqui eu admita que a ideia possa ser forçada, e portanto nela não me aventuro) os seus próprios deuses.

Os totalistarismos não são pois a negação da religião, mas a continuação da religião por outros meios - políticos. E foram tão destrutivos quanto destrutiva foi e tem sido a religião. Dir-me-ão que não está no cerne do cristianismo ou do islamismo o ódio e o desprezo pelo Outro, que o mal que deles nasceu não estava neles. Os textos que os fundam não são de forma nenhuma prova disso. Os fundamentalistas religiosos conseguem sempre encontrar nesses textos excelentes bases de apoio. Mais ainda, mesmo os crentes menos radicais usam da sua crença para frequentemente impor a outrem realidades não consensuais.

E a ideia pode ser explorada à exaustão: se no nazismo de barato dou que o ódio é próprio sustento da ideologia, ninguém de boa fé pode supor que Karl Marx pretendesse que em seu nome dez ou vinte milhões de pessoas fossem mortas na URSS, ou setenta milhões na China, ou dois milhões no Cambodja. Economista que era, provavelmente (poderíamos supor pelo contrário) que perante o falhanço prática da sua teoria, deixasse ele próprio de ser comunista. Os comunistas tinham muito boas intenções. Mas algo há no comunismo que o conduziu a ser tão nefasto. Por que motivo conclusão diferente poderíamos retirar a respeito do cristianismo ou do islamismo?

O desencantamento da política não se deu pois de forma nenhuma pelas ditas ditaduras ateístas (que, como ditaduras que são, são negações da razão e da Modernidade) mas pela laicização (em sentido próprio) ou seja, pelo Estado moderno. Estado moderno, Estado de direito, Estado fundado na soberania popular e Estado neutral. A sua neutralidade encontra uma das suas mais importantes, mas mais quebradiças, construções no Estado laico - uma instituição absolutamente independente dos variados dogmas aos quais os seus cidadãos possam ou não aderir, porque por certo nem todos aderirão aos mesmos dogmas e isso é já razão suficiente (se outras e muito boas não houvesse) para que o Estado não tenha dogma algum que não seja a ausência de dogma e o absoluto respeito por cada indivíduo tomado em si e nas suas relações com os outros indivíduos e nunca como parte de grupos infra-estatais que visem obter privilégios que a sua liberdade individual lhes não confira.

A última esfera na qual o desencantamento do mundo existe é enfim a moral. E aqui surge talvez o maior dos paradoxos - que de resto é mesmo anterior à própria Modernidade, mas que definitivamente se problematiza com ela. Entre a moral pregada dos púlpitos e o ethos vivido na sociedade vai uma distância tal que é difícil saber se vivemos todos num mesmo mundo. E arredo daqui a questão da hipocrisia e do falso moralismo. Não me interessa saber se o padre x cumpre os ensinamentos de Cristo, até porque ensinamentos cristãos há-os para todos os gostos. A questão é mesmo a de saber se os indivíduos se revêem nos dogmas que as religiões lhes pretendem impor. Quantos portugueses se dizem crentes de alguma religião, e quantos aprovaram o aborto até às 10 semanas? Quantos se divorciaram? Quantos se abstiveram de ter sexo fora do casamento? Quão fraca é a moralidade que não consegue que os indivíduos livremente ajam de acordo com ela, sem se ofenderem nem ofenderem os outros?

Diz-se amiúde que a religião é uma necessidade do Homem. Diremos então: a religião é patológica ao Homem. Não creio que seja uma inevitabilidade. Mas será um pathos. Ora aquilo de que o Homem enquanto ser racional precisa não é de se sujeitar a uma paixão, a uma inclinação da natureza, de se aviltar a uma reminiscência com fundamentos eventualmente até biológicos. O facto de a nossa natureza nos dizer para ter sexo loucamente para melhor propagarmos os nossos genes não significa que o façamos (diz-nos mesmo que, no processo, podemos morrer em resultado de doenças várias). Não, do que o Homem precisa não é de um pathos, é de um ethos, um hábito de reflectir e escolher racionalmente.

Ora uma ética fundada na única ideia metafísica racionalmente fundamentável (e ainda assim cientificamente não redutível), a liberdade, é precisamente o legado da Modernidade, esse desencantamento do mundo que a morte de deus constitui e que nos foi legada pelo Iluminismo. E O que é o Iluminismo?


O Iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é o culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. Tal menoridade é por culpa própria se a sua causa não resido na falta de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo sem a orientação de outrem. Sapere aude!
Kant, Resposta À Pergunta: Que é o Iluminismo?

Aceitar a morte de deus pelo reconhecimento do desencantamento da ciência, da política e da moral é por conseguinte a única forma de reconhecer a liberdade do indivíduo enquanto ser racional. E para tal não é preciso deixar de acreditar em deus. Basta já não o levar muito a sério. Nada que praticamente todos os ocidentais, de resto, já não o façam.

sábado, 17 de maio de 2008

A importância de ser branco

Já escrevi muitas vezes aqui contra Obama. E quanto mais a campanha avança, mais certeza tenho de que ele demasiado mau para ganhar e, ganhando, demasiado mau para bem governar. Mas a última polémica em torno do pastor de Obama mostra como a raça ainda é um factor de exclusão.

Os republicanos (e mesmo alguns democratas) são peritos em reunir como conselheiros e apoiantes líderes religiosos a todos os títulos abomináveis, com ideias execráveis e medievais. Eu desconfio que um dos factores da futura queda dos Estados Unidos (que já se iniciou com a invasão do Iraque, que como suprema manifestação do seu poder, foi também o início do seu declínio - quem atinge o topo só pode daí descer) é precisamente a disseminação galopante da religião, não apenas como crença descrente mas como prática convicta. Os efeitos da aceitação do criacionismo como teoria científica e a relativização abstrusa do conceito de ciência auspiciam um futuro tenebroso. O mesmo, de resto, que sucedeu aos árabes quando se lembraram de, em nome da religião, proibir a imprensa.

Assim sendo, naturalmente que critico as opiniões do pastor em causa. Mas vamos ser honestos: a crença em disparates foi alguma vez algum obstáculo para que alguém se tornasse presidente dos Estados Unidos? Como explicar então as duas vitórias de Bush? Como explicar a própria ascensão de Reagan? Como explicar que o Partido Republicano seja financiado por grupos de pressão que afirmam coisas tão brilhantes como o castigo divino da SIDA sobre os homossexuais ou o apoio a Israel como forma de criar uma guerra na Terra Santa a uma escala tal que o Apocalipse se possa dar e Nosso Senhor descer enfim à Terra?

Pois bem. O problema do senhor Jeremiah A. Wright Jr. não é ser um tipo execrável. Isso está longe de ser incomum entre os sacerdotes (é quase um pré-requisito). Não é tampouco ser racista. Pastores racistas brancos há-os às toneladas, inclusivamente havendo igrejas cristãs "arianas" (não obviamente no sentido da doutrina herética ariana dos primórdios da Cristandade, mas na ligação ideológica ao nazismo). O problema de Wright é que ele é um racista negro.

Um longo Verão de Noivado

Recebida por e-mail, esta brilhante analogia.

You know the whole idea of the Democrats going for Obama is like a seduction? People have basically been seduced by his charms, let their hearts rule their heads, chosen the dashing, charming Obama over the solid, clunky Clinton.

So now I'm thinking you can take this a step further. You're the early-voting Democrats you have had a whirlwind romance with Obama, a dashing, tall attractive, relative stranger. And you've got engaged!

But now there is some time before the wedding.

And you're introducing your fiance to their family and friends around the country. And the family and friends aren't impressed. They think this guy is a bit flash. They prefer the solid, clunky person you spurned. And even you are starting to have doubts. [...] And in fact, just like in any relationship, after the initial infatuation wears off, you discover he actually has some things about him that you don't like. He has some friends you don't really approve of (even his pastor is crazy!) [...]. Meanwhile, the spurned suitor is showing a lot of bravery, being pretty tough, showing they still really want you, and are willing to fight for you. [...]

And suddenly you're stuck. Do you call off the engagement or keep going and> hope for the best?


Andrew Gray

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Católico, de Direita, Casado e... Gay

Frédéric Minvielle fez tudo como devia ser: foi entregar os papéis do casamento à embaixada francesa em Amesterdão após o casamento com um cidadão holandês, em 2003. Minvielle quis a cidadania holandesa como forma de apreço pelo país permitir o seu casamento com outro homem. Segundo os acordos entre Holanda e França, é possível que um cidadão francês tenha dupla nacionalidade, caso assuma a da pessoa com quem casou. Assim, Minvielle achava que, ao comunicar a sua situação à Embaixada de França, manteria a nacionalidade francesa. Mas não.

A fundamentação legal das autoridades francesas é que, como a França não reconhece o casamento homossexual, Minvielle está solteiro e assumiu uma segunda nacionalidade, não podendo manter a francesa. Só o poderia fazer se estivesse casado. E, para a França, não está.

"Sinto-me um criminoso", disse Minvielle ao Libération, na sua casa em Amesterdão. E logo um cidadão como ele: "Sou católico, de direita, votei "Sarko".

Público.pt

Alguém devia explicar a este senhor que, à luz da sua religião, ele irá passar o resto da Eternidade a arder no Inferno. E que, à luz da orientação ideológica do seu partido, ele tem muita sorte (e não graças ao seu partido) em ser tolerado pelo Estado.