terça-feira, 25 de março de 2008

Para que serve a religião?

(em resposta a este post)

Dou de barato que a religião, na maior parte dos casos, garante maior honestidade dos indivíduos (e ser honesto aqui não significa necessariamente respeitar mais os outros).
Também dou de barato que a religião cumpre funções que podem ser socialmente relevantes, como por exemplo a "ritualização da vida" (as sociedades precisam sempre de ritos de passagem, de integração e de partilha entre os seus membros).
Em terceiro lugar, dou de barato que a persistência de um fenómeno ao logo de milhares de anos, desde as primeiras manifestações da existência de "cultura" (ou seja, produção e reprodução de crenças, costumes, saberes e técnicas) até aos nossos dias tenha inclusivamente deixado marcas na nossa própria constituição biológica, ou que biologicamente haja indivíduos mais propensos à crença religiosa que outros.
Por fim, o ser humano precisa de explicar o seu meio, e à falta de uma ciência que desvende os segredos dos fenómenos que presenciamos, o recurso a revelações divinas é satisfatório.



No entanto, tal como a violação foi em tempos idos uma necessidade de sobrevivência - ou seja, as tribos tentavam aumentar o seu número procriando com as mulheres de tribos rivais, ao mesmo tempo, privando essas tribos das suas mulheres, também diminuíam a sua capacidade de procriação; esse fenómeno está patente no Rapto das Sabinas e ainda hoje é visível em determinadas zonas do Médio Oriente, como seja a violação de cristãs coptas por homens muçulmanos no Egipto actual - e hoje já não é habitualmente aceite, sendo encarado como um crime bárbaro, assim também uma necessidade de homens de há 20.000 anos atrás não tem de ser encarada da mesma forma nos tempos que correm.

De modo que a questão que podemos colocar é: para que serve hoje a religião? Voltemos atrás: em primeiro lugar, foquei a dimensão moral; em segundo, a dimensão social; em terceiro, a dimensão propriamente religiosa, ou seja, da ligação entre o ser humano e uma divindade; em quarto, a dimensão cognitiva, de explicação.
- No que diz respeito à dimensão moral, creio que a resposta necessita ser bipartida. A Modernidade, ao criar o Estado de Direito, transferiu para a Política e para o Direito muito da dimensão ética (ou seja, da encarnação concreta a dar dos ideais morais). Por outro lado, a própria moralidade separou-se da religião, sendo disso o exemplo mais gritante o de Kant. A ideia de deus(es) é absolutamente irrelevante para a adopção de critérios de ordenação moral. A coberto da ideia de liberdade religiosa, cada indivíduo passou a ter a possibilidade de se orientar moralmente sem ter de dar uma justificação teológica para tal. E, olhando para os crentes e não crentes que todos conhecemos, só por muita falta de imparcialidade poderemos peremptoriamente afirmar que os crentes são moralmente superiores aos não-crentes.
- No que diz respeito à dimensão social, ou seja, aos costumes e ritos, fenómenos como a liberdade associativa e política, também trazidos pela Modernidade, também preencheram muito do espaço da religião. Por exemplo, a maioridade já pode ser alcançada já não em Bar Mitzvahs, por exemplo, mas com a carta de condução ou o direito de votar. Admito no entanto que algo mais possa ser necessário e aí os não-crentes estão normalmente em desvantagem. Não admira pois que em sociedades em que a não crença em seres divinos de espécie alguma comecem a surgir cerimónias que preencham esse vazio. Parece-me natural que assim seja; é uma necessidade humana perfeitamente racionalizável e que não tem de estar ao abrigo de concepções religiosas. O objectivo aí é a integração do indivíduo na sociedade, não a ligação indivíduo-deus.
- A ligação à divindade é o que é intrínseco à religião, e que portanto nada pode substituir directamente; de facto, a descrença é precisamente a inexistência de divindade. No entanto, se encaramos a necessidade de divindade como uma necessidade cognitiva, de explicação dos fenómenos naturais, confessemos que a ciência se tem saído muito melhor que a religião. É precisamente aqui, creio, que se trava um combate decisivo hoje em dia, que muitos crentes americanos, sobretudo, têm seguido com grande coerência. De facto, quem for um crente convicto na Bíblia tem de negar o evolucionismo e aceitar o criacionismo. Menos que isso significa já aderir a uma espécie de deísmo, enquanto crença num ser supremo mas negação da religião revelada.



Pela minha parte, creio que a única coisa em que os não-crentes não têm muito para oferecer é na ritualização, na integração social e na dimensão estética, litúrgica. É precisamente aí que os religiosos tendem a ganhar. Esta constatação nada tem de novo - os apelos a uma religião civil, de Rousseau, já apontam para aí. Contudo, essa proposta tinha uma dimensão política que me desagrada profundamente. De facto, não pretendo impôr a ninguém o meu ateísmo - tal como exijo que ninguém me imponha a sua religião - embora ficasse muito feliz se houvesse instituições privadas, como as que existem no seio da International Humanist and Ethical Union que dessem o seu contributo neste sentido. De caminho, compreendo que há questões científicas e políticas que, correspondendo a uma rigorosa neutralidade do Estado, são encaradas como ofensivas pelos religiosos, como seja a teoria da Evolução ou a laicidade do Estado. No entanto, a tarefa aí será eles provarem que um Estado não laico seria mais neutral face às diversas disposições morais e religiosas, ou que cientificamente a teoria da evokução está errada. O desafio dos religiosos é descerem do seu pedestal de dogmas e argumentarem em cada campo com os argumentos próprios a esse campo e não imporem a sua teologia a todas as áreas de actividade humana.

5 comentários:

EJSantos disse...

Religião? A que se refere?
À religião organizada? E neste post, há lugar a religiosidade pessoal?
Sou religioso (e muito), mas defendo tenazmente o Estado Laico e desconfio muito das Religiões organizadas.

Igor Caldeira disse...

Essencialmente à religião organizada. Creio que há três dimensões que têm de ser separadas: as crenças (religiosas) individuais; a socialização no seio dessas crenças; e a socialização fora dessas crenças.

Esquecendo por momentos as crenças religiosas pegando pelo meu ateísmo, eu tenho as minhas convicções a esse respeito, fiz o meu percurso para concluir que não existe(m) deus(es). E tenho a minha própria abordagem a respeito do que é o humanismo. Existe esta dimensão transcendental subjectiva que ninguém pode querer tirar-me. Faz parte do que sou, determina a minha liberdade.
Por outro lado, reconheço que há a necessidade de partilhar esta mundividência com pessoas que tenham visões similares e também de introduzir ritos: todas as religiões terão ritos como casamentos, funerais, passagem da infância para vida adulta, etc.. Não me reveria numa instituição que me ditasse o que fazer (coisa muito difícil no seio do ateísmo) mas a dimensão a que eu chamo estética e litúrgica é uma dimensão da qual muito poucos prescindem, e quando o fazem não raro sentem um vazio.

Há enfim a vivência em conjunto com todas as outras pessoas, partlhem das nossas crenças ou discordem delas, sendo aí o desafio encontrar as regras que permitam que cada um viva como lhe aprouver (e "cada um" já implica a limitação mútua da liberdade de cada indivíduo; não se trata de dizer que um indivíduo pode isoladamente fazer o que quiser, significa que cada indivíduo, vivendo inevitavelmente em sociedade e por isso sendo limitado pelas liberdades dos outros indivíduos, deve ser livre de fazer o que quiser). Esta dimensão é essencialmente política.

Apesar de eu normalmente preferir falar da dimensão política e de considerar determinante a dimensão individual, neste caso acabei por falar principalmente da dimensão intermédia. Mutatis mutandis, o que disse para o meu ateísmo é também aplicável à religiosidade de outra pessoa. As pessoas religiosas, mesmo que vivam a sua crença de uma forma individualizada, têm muitas vezes necessidade de a partilhar com os seus pares, sendo essa a grande vantagem das religiões organizadas.

Héliocoptero disse...

Esta entrada tem em falta um elemento da religião: a complementaridade.

A dimensão moral existe sem dúvida alguma autonomamente, mas isso não impede que as regras de conduta civis possam ser complementadas por uma contextualização religiosa, tanto individual como colectivamente na soma dos que formam a comunidade de crentes. O mesmo se pode dizer a respeito da função social e até da cognitiva: o voto ou a compra de casa qualquer um pode complementar com uma cerimónia ou sentido religioso; a ciência pode desvendar as origens e dinâmicas dos fenómenos, mas isso não me impede de vivê-los de um modo emocional ou passional paralelamente à explicação cientifica.

Desde que a religião seja vivida com peso e medida - incluindo com um filtro racional - não vejo porque é que não há-de cumprir todas as funções enunciadas pelo Igor. E é óbvio o Estado que permite maior liberdade de culto é aquele que é neutro em matéria religiosa, pressupondo que essa neutralidade não é confundida com ateísmo estatal. Afinal, reduzir o religioso a actividades privadas entre quatro paredes tem tanto de limitador quanto os Estados confessionais que proibem qualquer expressão pública de culto que não a oficial. Neutralidade religiosa também implica que não se tome partido pela não-religião.

Héliocoptero disse...

Esqueci-me de referir outro ponto.

A organização das religiões em associações, organizações comunidades locais com orgãos próprios é uma necessidade que decorre do próprio Estado de direito. Cidadãos que partilhem um conjunto de crenças e rituais e que desejem estabelecer um espaço de culto comum, organizar ou participar em actividades culturais, adquirir terrenos ou utilizar alheios com a devida permissão ou requerer a realização de actividades de culto em espaço público, terão mais facilidade - ou credibilidade - se o fizeram como entidade colectiva com personalidade jurídica. E isso implica que se organização enquanto associação religiosa.

Podemos naturalmente questionar que tipo de organização será, se dá mais ou menos liberdade aos seus membros, se estabelece ou não uma ortodoxia, mas a necessidade de os crentes se organizarem parece-me inevitavel a qualquer comunidade religiosa que queira subsistir. Até os ateus se associam juridicamente falando!

Igor Caldeira disse...

Olá Heliocóptero,
"A dimensão moral existe sem dúvida alguma autonomamente, mas isso não impede que as regras de conduta civis possam ser complementadas por uma contextualização religiosa"
Eu coloquei isto debaixo do chapéu da "dimensão social"; um casamento é apenas um contrato legal, tal como o enterro de alguém não obriga à existência de um velório. No entanto, a maior parte dos indivíduos sente necessidade da cerimónia, do rito, de socializar um determinado evento.

Foi também nesse sentido que encaminhei a minha menção ao Humanismo Secular: em países como os Estados Unidos, o Reino Unido ou a Suécia há ateus e agnósticos que criam instituições (no seio da IHEU) que desempenham essas funções de complementaridade.

No fundo, ao falar da religião eu estava a falar da não-religião e da desintegração social que há se essa função não for preenchida na fatia crescente de pessoas (em particular na Europa) que é ateia ou (mais frequentemente) agnóstica. Como ateu realmente acho que essa função deveria ser preenchida - como disse no post, é precisamente nesse campo que as religiões tendem a ganhar vantagem.