Ontem à noite escrevi um post que focava a questão da identidade e da protecção da autonomia individual no que à identidade cultural concerne. Nem de propósito, a RTPN transmitiu ontem novamente o debate no Prós&Contras sobre a ética republicana e os valores monárquicos (quem quiser em todo o caso vê-lo, ainda o pode fazer online).
O essencial do argumento dos monárquicos vem curiosamente (bom, na verdade não é curioso, porque o curioso foi eu ter escrito um post sobre o tema antes de ter visto o programa) de encontro à problemática da identidade. Como o rei "apenas reina, não governa" o seu papel é apenas o de manter a "identidade histórica" nacional, como "espírito vivo" do povo (assim uma espécie de Volksgeist versão personalizada e purificada pela consanguinidade excessiva). Em Portugal justificar-se-ia a monarquia devido ao seu passado histórico, porque essa é a identidade que lhe vem legada pela História, ao passo que em países como os Estados Unidos ou a Irlanda já não. Vamos por partes.
Em primeiro lugar, o que é essa tal identidade historicamente construída? Temos de aceitar e manter tudo o que a História nos legou? A História nacional tem em si a perseguição aos mouros, aos judeus, a Inquisição, a escravatura, o colonialismo. Não consta que nos dias de hoje mantenhamos ou pretendamos recuperar tais legados. Portanto o argumento dos oito séculos de História é um mau argumento - embora seja o essencial do argumento dos monárquicos. Mas há mais, e mais determinante.
Em segundo lugar, e ultrapassando a questão quantitativa, vamos responder à questão qualitativa que já colocámos: o que é essa tal identidade historicamente construída? Os monárquicos pretendem utilizar a coroa como Cavalo de Tróia de uma série de outras coisas que os portugueses simplesmente não aceitam e nas quais não se revêem. Por exemplo, e Teixeira Pinto é a prova viva disso mesmo, pretende-se recuperar o ascendente político da Igreja sobre a sociedade e o Estado (ou, melhor ainda, e muito ao contrário do que os católicos muitas vezes dizem, pretende-se recuperar o ascendente religioso sobre a sociedade, através do Estado, porque na sociedade esse peso está já perdido). Teixeira Pinto afirmou e bem que nas eleições espanholas ganhou um partido socialista sem que a questão da monarquia seja colocada. Mas foi-o, e de uma forma que num país aberto, europeu e progressista como a Espanha já não se esperaria (pelo menos em relação ao catolicismo, dado que o islamismo está a trazer infeliz e novamente a questão) a questão do laicismo, com a Igreja Católica a fazer propaganda cerrada contra o PSOE e o governo de Zapatero. Ora, vejamos quem são os nossos monárquicos, o que defendem em termos de relações entre Estado e Igreja - eles têm uma concepção de identidade nacional que limitaria o poder de escolha dos indivíduos, a sua autonomia moral. Numa sociedade liberal nenhum indivíduo pode ser coagido a aceitar uma concepção de vida boa, ele próprio é livre de escolher a que melhor lhe parecer, desde que essa concepção não limite a liberdade alheia. Ora um país no qual o rei e a Igreja impusessem aos indivíduos uma identidade que já nos viria dada pela História seria claramente iliberal.
Em terceiro lugar, e passando da questão qualitativa para a material, concordo em grande medida com Teixeira Pinto quando diz que temos de olhar para a História de cada país para perceber o regime que melhor lhe cabe. Digo isto sem entrar em contradição com o segundo ponto, porque se num país a monarquia não for limitadora da autonomia individual e não for uma questão política premente não há motivo para se mudar de regime (Ribeiro Telles disse mesmo que nos países escandinavos não havia dramas com a monarquia porque na verdade eram repúblicas); ora, o mesmo poderíamos dizer das repúblicas e António Reis bem frisou que existe um quase consenso na sociedade portuguesa a respeito do regime, no qual 80 a 90% dos portugueses se revêem e ainda que não há qualquer questão constitucional noq ue ao regime respeita. Ora, é precisamente atendendo à nossa História e ao facto de entre nós a monarquia e os monárquicos serem ideologicamente orientados, pretendendo formatar moralmente o país, que a monarquia seria uma péssima opção para Portugal. E a comparação com a Espanha ou a Bélgica, ou até o Reino Unido, não poderiam ser piores: é que aí a monarquia realmente garante a unidade de territórios que de outra forma se desmembrariam. Tirando as loucuras de Alberto João Jardim (às quais de bom grado eu daria cobertura, tivesse ele coragem de seguir em frente - desde que nos deixasse ficar com Porto Santo) não consta que tenhamos problemas com regiões separatistas. Comparemo-nos com países cultural e geograficamente próximos: mediterrânicos e/ou católicos. À excepção da Espanha, que tem o problema da unidade nacional, Portugal, França, Itália e Grécia são repúblicas. Coincidência? Não; é efectivamente uma questão histórica e cultural.
Em suma, os monárquicos têm razão quando afirmam que temos de olhar para a nossa História. E é precisamente olhando para ela que percebo que é a república ou a barbárie.
7 comentários:
Ninguém pode dizer que não meteste o dedo na ferida, Igor.
É certo que o facto de rejeitarmos elementos História não nos impede de aceitarmos outros - tal como na Escandinávia se rejeitou práticas passadas e se preservou a monarquia - mas tens toda a razão quando dizes que há uma agenda moral e religiosa subjacente à causa real portuguesa. Monarquicos que defendam um Estado democrático e laico são aves muito raras que não estão certamente no "mainstream".
Melhor seria se a Coroa se constituisse como instituição privada, aí sim com as suas próprias regras e princípios conforme a vontade dos seus membros e a desempenhar na sociedade civil o papel simbólico e agregador que reclama, mas apenas com a força que essa mesma sociedade civil lhe desse e não à custa do Estado. Não me chocaria até se, dado valor histórico da Coroa, lhe fosse concedido um lugar no Protocolo.
Além de concordar com o Igor tenho que "discutir" com o heliocoptero :)
Sinceramente não me faz confusão nenhuma uma sociedade monárquica mas teria que ser em linhas muito diferentes daquelas que regem a aristocracia normal que no fundo preza apenas pela apatia e manutenção de um previlégio não merecido e de natureza hereditário. Se querem fazer uma hirarquização da sociedade em modelos menos igualitários acho a ideia interessante mas apenas respeitando um critério de mérito e não de linhagem que no fundo é uma condenação à ossificação social do país.
É a república ou a barbárie? que jeito simplório de abordar o assunto.
E qual é a sua república? A actual (que é a minha e à qual pertenço com todo o gosto) ou o cancro da I república? Já sei, já sabemos.
Recordo que a esmagadora maioria dos lusos n optando pela monarquia n comungam dos sentimentos jacobinos anti-monarquia e anti-monárquicos e que será mais fácil uma restauraçao real que o retorno de afonsos costas e quejandos.
P.s. Em relaçao a Espanha e à alegria pela possibilidade de Zapatero "perseguir" a ICAR, lembro (para quebrar algum entusiasmo) que com a nova lei de financiamento da igreja, esta perdendo algumas regalias ganhou outras, sendo que nas palavras de vários ministros esta passou a ganhar mais fundos (algo n foi desmentido pela ICAR) e que esta legislatura bateu o recorde do número de restauraçoes de igrejas feitas às expensas estatais, portanto lamento, mas a igreja segue.
Ainda no que toca á igreja, teremos em breve eleiçoes em Itália na qual a mesma já ganhou. Paciência
Toca pontos interessantas, de facto.
Penso que a questão República vs Monarquia já não se coloca como outrora.
Debates como o do Prós e Contras são engraçados, porque nos divertimos um bocado a ouvir dissertações teóricas acerca de regimes políticos. São boas aulas de história, mas não nos levam a lado nenhum.
A República já deixou de ser um regime político, em Portugal. É O regime político e já está enraizado na população. Mesmo que digam que 12.5% são a favor da monarquia, resta saber da amostra.
Cumprimentos
Vox Patriae
Heliocóptero: é um facto que muitos monárquicos - a maioria, mesmo - não são propriamente credibilizadores da sua causa. É mais ou menos como os anarquistas, mas ao contrário: estes precisavam de se lavar um bocado, aqueles de se sujar um bocado. Ninguém de boms senso cai na esparrela da moral e dos bons costumes.
Em todo o caso, não concordo com a inclusão de um qualquer representante de uma suposta família real no protocolo de Estado: quanto mais não fosse, porque isso seria dar cobertura a uns pretendentes em detrimento de outros. Os próprios monárquicos não concordam entre si sobre quem deveria ser o herdeiro.
Pedro: não foquei a questão da aristocracia, mas aí está outro terrível inconveniente da monarquia. Alguém está a ver a sociedade portuguesa a aceitar pacificamente a re-instalação de privilégios (legais ou meramente sociais) em função de títulos nobiliárquicos? Eu felizmente não. E levo a luta até à língua: comigo não há Dom Duartes Pios de Bragança, há o senhor Duarte Bragança, ou o cidadão Duarte Bragança. Se estiver muito mal disposto chamo-lhe citoyen Bragança que é por causa das tosses.
:-D
Aznar, Bush, Blair e outros mais: jeitos simplórios cada um tem os seus. Não queira ficar com o monopólio, deixe um pouco para mim também. Quanto à república, a minha é a que tenho, é a que está aqui. Vive noutra?
André: essa é muito bem vista, porque de facto se nós vivêssemos numa monarquia moderada provavelmente a questão da república não se colocaria, tal como na república hoje não se coloca (seriamente) a questão da monarquia. É mais um entretém, dou toda a razão. Talvez a procura de algum debate realmente de fundo, posto que hoje já ninguém é fascista e aos poucos comunistas do PCP já ninguém presta muita atenção (aleluia por isso).
Bem, quando eu sugeri que a Coroa pudesse ter um papel no Protocolo de Estado, era pressupondo que ela se organizava enquanto instituição privada e, por isso mesmo, resolvesse os problemas internos da causa real. Claro que enquanto digo isto tenho a minha consciência a mandar uma grande gargalhada porque sei dos acesos diferendos internos e da dificuldade dos monárquicos portugueses em aceitarem mudanças, seja de forma ou de conteúdo. E isso torna qualquer forma de organização e moderna credível um grande problema.
Grosso modo, acho que deviam tomar o exemplo da monarquia maori: independente, bem organizada, com um cerimonial, regras e orgãos próprios e com relevância social. Tudo como organização privada, sem qualquer papel constitucional, não deixando por isso de ter uma função aglutinadora, um peso cultural e de ser um símbolo nacional da Nova Zelândia. No fundo, é muito daquilo que os monárquicos dizem que uma monarquia deve ser, mas sem possuir a chefia de Estado e verdadeiramente baseada na sociedade civil.
Para agarrar numa coisa dita pelo Pedro... :p
... o critério do mérito na criação de "títulos" concedidos pelo Estado devia existir até em República no contexto das actuais Ordens Honoríficas que, como a prática de Jorge Sampaio tão bem demonstrou, são pau p'ra toda a obra ou medalha para toda a ocasião. Reformar as Ordens como instrumento de criação de uma cultura de mérito já calhava, estabelecendo-se com clareza as regras de atribuição, áreas de condecoração e graus méritocráticos.
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