domingo, 21 de outubro de 2007

Porreiro, pá! - ou como fugir em frente pela porta do cavalo

Há críticas relativamente justas que se podem fazer ao texto da constituição europeia. O seu volume assusta. Não foi feita de forma democrática. Mas tinha virtudes: sistematizava. Instituía princípios políticos basilares que definiam o que é em concreto ser europeu.
A desconfiança dos cidadãos holandeses e franceses face a um texto muito grande, alvo de um sem número de mistificações (que livremente puderam correr não só pela dimensão e ilegibilidade do texto como pela obscuridade que implica a sua escrita por um conjunto de iluminados politicamente irresponsáveis que ninguém conhecia, que não prestavam contas perante os cidadãos e que sobretudo, e isto é fundamental, foram político-burocraticamente nomeados e não democraticamente eleitos para o efeito) resultou num duplo chumbo.
Grande crise, a eurocracia treme, e agora pá, e agora pá? Ah, claro, vamos simplificar o texto. E assim foi. Os elementos que estariam na base do necessário aparelho simbólico da cidadania europeia desapareceram, os princípios foram rasgados em nome das leis laborais de Tatcher e do ultracatolicismo que não é bacoco apenas porque é demasiado perigoso de uma Polónia que esqueceu o seu passado ou se lembra demasiado do seu passado para se recordar do que ela poderia ser sem Europa e de ter sido o primeiro país europeu com uma Constituição moderna. E pouco mais mudou. A maioria (que não o essencial) do texto inicial está aí.
E vai passar, ser aprovado como sempre foi tudo aprovado nas comunidades europeias: o povo é estúpido e não sabe o que é bom para ele. Os governos, negociando fatias e migalhas de supostos interesses nacionais, vão fazer tudo pela porta do cavalo, dado que a resposta que anteriormente ouviram não lhes convinha. É uma fuga para a frente que se arrisca a ter como destino o precipício. Tinha sido daí que tínhamos fugido no princípio.
Ontem participei num debate de um magazine europeu online (Cafébabel.com) em que o redactor Fernando Navarro afirmava que é vital a existência (ou seja, a criação, e que só pode ser criação a partir de baixo) de uma opinião pública europeia. Ou seja, é fundamental haver um conjunto de pessoas que olhem para a Europa desde um ponto de vista europeu. Concordo e acrescento que só assim a Europa se irá corporizar, ser real, e só assim esta mistura pardacenta de governos e burocratas vai realmente começar a ser posta em causa. Houvesse uma opinião pública europeia e tudo teria sido radicalmente diferente: a constituição provavelmente seria elaborada por uma assembleia constituinte europeia constituída por deputados mandatados para o efeito e a ratificação far-se-ía por um referendo único europeu.
E não tenho dúvidas nenhumas que, se o processo fosse este, teríamos uma constituição que seria facilmente aprovada em todos (bom quase todos - o Reino Unido votará sempre contra, mas era da maneira que teria de sair da UE) os países europeus.
Termino com uma declaração de Medeiros Ferreira na Única desta semana "As questões da Europa só são discutidas nos cafés quando a imprensa, os políticos ou líderes de opinião os suscitam a falar e a pensar sobre determinados assuntos. De outra forma há, quando muito, uma reflexão adjacente à sua vida quotidiana." O problema é que os próprios governantes actuais, ao invés de se centrarem no tal ponto de vista europeu, preferem manter a discussão e a negociação nas questiúnculas comezinhas ou na alarvidade absoluta: os sítios onde as coisas são assinadas, aquele deputado extra ou se a pena de morte é uma coisa má ou não.

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