quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Um utilitarismo degenerado

Sobre as ligações entre utilitarismo, pensamento económico (em que muitos, pelo simples facto de serem economistas e defenderem a economia de mercado, se acham liberais) e liberalismo, muito se poderia escrever. Mas vou apenas focar um, a propósito da petição da Ala Liberal do CDS.

8. A ALA LIBERAL desconfia do “interesse público” que tantas vezes serve de suporte à intervenção estadual e promoverá a sua substituição pelo “interesse geral”, enquanto conjunto dos vários interesses particulares

Muitos que não se deram ao trabalho de ler Rousseau afirmam que a sua vontade geral é uma forma de esmagar o indivíduo sob o peso de maioria aritméticas. Isso é categoricamente desmentido no Contrat Social e basta apenas não ser analfabeto nem iletrado para ler o que lá vai escrito. Rousseau pode ser uma figura a muitos títulos sinistra (porque o é) mas a vontade geral está longe de ser a sua pior criação. Se é um facto que alguns lhe atribuem a origem do jacobinismo, uma leitura dos escritos de Robespierre dá-nos a entender que este próprio rejeitava Rousseau e que o seu projecto em nada se inspiraria neste último. Mais importante ainda, a vontade geral rousseauniana foi determinante para a obra de um dos filósofos mais individualistas de sempre - Kant. E não é por acaso; basta percebermos a natureza da vontade geral para percebermos a sua potencial ou efectiva ligação a um individualismo ilustrado que não caia no onanismo egotista dos românticos.

O conceito de interesse público caiu em desgraça, e caiu por bons motivos. Qualquer disparate nos tempos que correm é feito em nome do interesse público. No entanto, e mais frequentemente, esse interesse público em nome do qual se age não passa precisamente do tal interesse geral, nos termos em que os peticionários o entendem, ou seja, como conjunto dos interesses particulares prevalecentes (é curiosa de toda a guisa a brincadeira de palavras com o "público" e o "geral" - uma inspriração rousseauniana por aquelas bandas, será?).

E é aqui que temos o problema. Esta soma dos interesses em que o poder que cada um detém determina o conjunto dos seus direitos (e não a submissão a um critério racional, isto é, universal, isto é, imparcial) é um perigo enorme. Precisamente daqui nascem todas as formas de opressão, venham de que lado vierem: quando em vez de normas validáveis de forma universal temos a decisão entregue a maiorias (que podem ou não ser maiorias de pessoas, mas que são essencialmente maiorias como maiorias de poder - de facto, se cem pessoas mandarem em mil, elas numericamente são uma minoria; mas, politicamente, elas são uma maioria) caímos no egoísmo que nada tem que ver com o utilitarismo de Stuart Mill nem tampouco com o interesse próprio moderado pelo espectador imparcial de Adam Smith.

Eu que não sou utilitarista, mas sim kantiano, reconheço que a crítica rasteira que é feita a essa corrente - de que se trata do mero egoísmo transformado em doutrina moral - é sumamente injusta. É triste que visões meramente económicas do liberalismo, que decorrem do pensamento económico que por sua vez é um produto de autores como Hume, Smith ou Mill, redundem nisto. A óptica da imparcialidade que aí subjaz desaparece por completo. E, com ela, o seu potencial libertador que coloca de parte o perigo autoritarista que todos os utilitarismos (e o marxismo é um utilitarismo), apresentam.

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