segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Repensar a Esquerda, o Centro e a Direita

Numa blogosfera em que dominam sobretudo os blogues ou mais à Direita ou mais à Esquerda (e em particular os primeiros), ter espaços como o Esquerda Republica ou o Margem Esquerda é sem dúvida positivo. Poderia referir outros blogues próximos desta área, mas fico-me pelo essencial para este post que vem na sequência deste outro e ainda de uma série de posts que foram escritos no Esquerda Republicana, a saber, Socialismo e Liberalismo partes I, II e III.

No Margem Esquerda encontramos a frase Talvez porque foram os liberais os primeiros a assentarem na margem esquerda da política.
No texto de João Cardoso Rosas, Há uma esquerda estatista e uma esquerda liberal. Também há uma direita liberal [...] e uma direita estatista.
No Esquerda Republicana lemos Deveria ser possível a pena de morte? É correcto impedir o consumo de drogas pesadas? E leves? A prostituição deve ser proibida? É legítimo controlar a entrada de emigrantes? A eutanásia deve ser proibida?Se respondeu "sim" a estas perguntas todas, não invente desculpas: o leitor não é um liberal. Se tem pena, porque gosta da palavra "liberal, pois fá-lo sentir-se um pouco rebelde, mas não gosta nada da bandalheira em que a "ditadura da liberdade" resulta, auto-intitule-se "liberal à la Pedro Arroja" para causar menos confusão.

Desde logo eu ponho uma objecção que creio não ser irrelevante à divisão que João Vasco faz, recorrendo à já normal divisão (mais sofisticada que a separação Esquerda/Direita) entre uma avaliação de posições económicas e sociais. Ele coloca todo o extremo libertário desde o ponto mais à esquerda até ao ponto mais à direita no campo liberal. A minha questão é que isto desvirtua o conceito. Se o liberalismo é isso tudo, então o que é?


Creio que pelo menos o anarquismo de Esquerda tem de ser subtraído desse campo. Resta como tratar os libertários de Direita, o que teoricamente pode ser uma questão encantadora mas em termos práticos é nula: está por nascer o homem ou mulher que conseguir honestamente colocar-se no extremo inferior de direita. No entanto e admitindo essa possibilidade, admitamos que serão os libertarians a ficar nesse canto, e por extensão todos aqueles que se reclamarem apoiantes e seguidores do pensamento de Friedman na sua integralidade (e não mantendo o libertarismo económico expurgando o libertarismo nos costumes).

Temos, portanto, os anarquistas e os libertarians nos extremos. Não é difícil perceber onde quero chegar. O liberalismo, que na esfera dos costumes se pode desenvolver ao longo de toda a parte inferior do eixo vertical, tenderá a colocar-se nas zonas centrais do eixo horizontal, seja mais à esquerda seja mais à direita.


A título exemplificativo vejamos a seguinte distribuição de resultados neste esquema de alguns filiados no único movimento político liberal português:




O resultado parece ser congruente com o que eu já tinha afirmado. Usando-me a mim próprio como cobaia, o resultado foi


Ao contrário do que tanto comunistas e afins, e conservadores e afins costumam afirmar, o liberalismo não é uma doutrina de Direita, mas sim de Centro. E de Centro não indiferentista, não baseado na gestão de interesses - isso é aquilo em que a social-democracia (ou socialismo liberal) e o conservadorismo moderado (ou conservadorismo liberal) caíram por cedência à realidade, ou seja, por terem de aceitar pelo menos parcialmente o liberalismo económico. A questão é que esta cedência implica uma corruptela da ideia que abre caminho a situações ideologicamente insustentáveis. Recentemente dei um exemplo (em Portugal) da incoerência social-democrata e dois exemplos (um americano e outro francês) da incoerência conservadora.

Muitas das considerações menos lisonjeiras que são utilizadas contra o liberalismo resultam desta confusão e desta mistura que esvazia o conceito de mercado da sua dimensão ética (o que implica direitos mas também - facto tão frequentemente esquecido ou vituperado à Direita - deveres) e o transforma numa luta despida de outros princípios que não o interesse pessoal imediato (o que implica que se eu puder roubar sem ser apanhado para obter mais ganhos, o devo fazer).


Muito mais importante é no entanto outra coisa. A própria conceptualização do gráfico da bússola política não permite captar toda a dimensão do problema. Nomeadamente, a abordagem feita ao eixo económico leva-nos a concluir - de forma errónea pelo que acabei de dizer a respeito do conservadorismo - que quanto mais para a Direita caminharmos, menos economicamente estatista seremos.
Ora, aceitar isto implica aceitar que a influência do Estado sobre a economia se faz exclusivamente por via da posse dos meios de produção ou de mecanismos de redistribuição oficiais. Politicamente a realidade é bastante mais complexa e o intervencionismo conservador atesta-o. Um Estado pode ser fortemente intervencionista sem ter uma única empresa pública nem segurança social nem Educação ou saúde públicas. O Estado pode centrar a sua actuação na protecção das empresas nacionais e no seu fortalecimento face à concorrência estrangeira, manipulação do mercado que qualquer bom conservador aceitará de forma mais ou menos explícita e perante a qual qualquer bom liberal tenderá a arrepiar-se.

Portanto aquele gráfico transmite-nos uma ideia errada se aceitarmos as coordenadas os eixos "sociedade" e "economia". Temos duas alternativas:

  • transformar o posicionamento político de f(sociedade, economia) em f(costumes, propriedade, Estado) - o que pessoalmente considero pouco prático;
  • substituir sociedade e economia por dois valores: liberdade (substituindo a sociedade) e igualdade (substituindo a economia).

O seu a seu dono: fui recolher esta ideia ao artigo de João Cardoso Rosas. E passo a explicar a minha posição, embora quem tiver lido o artigo já possa estar a adivinhar por esta altura a conclusão. Para defender a ideia de que o PS é de Esquerda, o autor referiu as várias políticas deste partido que têm como objectivo a igualdade, embora a igualdade não na perspectiva maximalista do comunismo mas na perspectiva da igualdade de oportunidades. Portanto, numa visão mitigada, moderada, centrista de igualdade. No extremo esquerdo temos as famílias políticas que defendem a igualdade concreta e absoluta; no extremo direito encontraremos enfim aquelas famílias que negarão a igualdade (ou seja, que afirmarão ou que a igualdade põe em causa a propriedade e a liberdade, ou - o que é o mesmo - que a igualdade é um dado adquirido: somos todos iguais em teoria e portanto nenhuma actuação política para gerar igualdade real é legítima).

Qualquer uma das posições que ora referi é compatível com maior ou menor intervenção do Estado, sendo que no entanto ao centro encontraremos políticas mitigadoras da desigualdade real e que visem efectivar a igualdade teórica (ou seja, a todos deve ser dada a oportunidade de competir); à esquerda encontraremos uma negação da competição pela proibição da desigualdade; à direita encontraremos uma negação da competição pelo impedimento prático (que vai a par com a permissão teórica) da competição.
As variações serão por conseguinte produto da nossa vontade de estimular uma maior ou menor dinâmica social, ou seja, uma maior ou menor separação do indivíduo face ao meio envolvente. Pela sua posição central, o liberalismo (nos termos em que o defini no início, por oposição aos anarquistas e aos libertarians) é quem mais individualista é, não só pela defesa da liberdade de costumes, mas porque do ponto de vista socio-económico não aceita nem a sua absorção pela colectividade nem que o seu sucesso seja simplesmente produto do nascimento.

7 comentários:

Elisabete Joaquim disse...

Faz sequer sentido dizer que o «liberalismo» é uma doutrina preenchida por ideias políticas, seja de direita, de esquerda, ou centro? Não estaremos a abusar do formalismo que o conceito de «liberalismo» suporta?

Confesso que tenho até dificuldades em compreender o conceito de «liberal social». Diz que o «liberalismo» é quem mais individualista é. Então como se legitima o «social»? Por coincidência espontânea de todas as vontades «individualistas»? Ou impondo restrinções ao individualismo?

Igor Caldeira disse...

Há até quem diga que haver partidos liberais é um contra-senso. Nem de propósito, quem o diz são os "liberais" que defendem que Salazar representou a ponto mais alto da História portuguesa pós-absolutismo.

Liberalismo social corresponde a uma corrente política iniciada no Reino Unido nos finais do século XIX e princípios do século XX e que tem hoje representantes em partidos como o LibDem (RU), o D66 (Holanda) ou o MoDem/UDF e PSLE (França). Se tem dúvidas sobre o conteúdo doutrinário do liberalismo social, qualquer recensão de Rawls dar-lhe-á uma ideia básica do que o liberalismo social é. Muitas vezes é confundido com a social-democracia, mas ao contrário desta o liberalismo social não é estatista. A ideia base é igualdade de oportunidades e liberdade de acção. Ou seja, há um mínimo de justiça assegurado e o resto será o resultado da competição justa - não a competição entre gigantes e anões, que obviamente nunca é uma competição justa, mas entre pessoas que são colocadas num plano de partida igualitário. Assim, ao contrário do conservadorismo liberal, não entende as desigualdades de nascimento como sagradas, mas defende pelo contrário que o sucesso de cada indivíduo deve depender do seu mérito exclusivo, do indivíduo, e não da família, do dinheiro da família, do prestígio social da família. É nesse sentido que o liberalismo (genericamente, e o social em particular) é individualista. Porque nem defende um Estado (socialismo) nem uma sociedade (conservadorismo) que esmaguem o indivíduo; cada um terá de valer-se por si próprio.

Para além disso, do liberalismo social é indissociável a liberdade de costumes. Não pode haver nenhum liberal social que aceite uma sociedade que imponha crimes sem vítimas (por exemplo, o casamento entre homossexuais gera vítimas? não, logo, deve ser permitido, etc.). Pelo contrário, tanto o conservadorismo liberal como o socialismo liberal não obrigam a este posicionamento.

Elisabete Joaquim disse...

Obrigada pelo esforço, mas das suas distinções entre vários tipos de liberalismo fico só com uma vaga ideia de curto-cirtuito conceptual.

Aguns exemplos:

«ao contrário do conservadorismo liberal, não entende as desigualdades de nascimento como sagradas» (sic) - falácia do homem de palha

«o sucesso de cada indivíduo deve depender do seu mérito exclusivo, do indivíduo, e não da família, do dinheiro da família, do prestígio social da família.» Como faz para garantir que os dois não são dependentes? Parece que afinal o «liberalismo social» deve ser estadista.

«nem defende um Estado (socialismo)»
A função do Estado liberal social não é a redistribuição?

Quanto a Rawls, foi o próprio a admitir no fim da sua carreira que avaliara mal a benignidade da função de igualdade protagonizada pelo Estado.

Elisabete Joaquim disse...

Posso facilitar a discussão e perguntar-lhe directamente se o «liberal social» de que fala não é um socialismo com tendência progressiva para o liberalismo.

Acerca das diferenças entre liberalismo e progressismo, o que acha disto: http://www.youtube.com/watch?v=C2oOoCdFblc

Igor Caldeira disse...

Não se trata de homem de palha. Trata-se de ler Burke.

O liberalismo social preocupa-se com a definição de mínimos, sendo que os meios para garantir os mínimos podem ser ou não estatais (desejavelmente não o serão, mas se se provar que o Estado é melhor instrumento, usa-se o Estado0). Se está a dizer que o liberalismo social não é anarquista, eu digo, não, de facto não é anarquista. O objectivo não é ser contra o Estado. É ser pelo indivíduo. Duas perspectivas radicalmente distintas.

A redistribuição terá de ocorrer, embora não porque seja um bem em si. Ela é um meio para garantir que todos os cidadãos quando nascem terão as mesmas oportunidades e que ao longo da vida haverá um mínimo de dignidade que permita a cada um, depois de cair, poder levantar-se. Não se trata de redistribuir para que todos sejam iguais, trata-se de redistribuir até onde for necessário para que todos tenham iguais possibilidades de ser autónomos.

Sim, quando deixou de considerar o socialismo como possibilidade viável. Quando fez a Teoria da Justiça colocou as duas possibilidades (socialismo e liberalismo). Mais tarde recusaria o socialismo.

Igor Caldeira disse...

Já agora, sobre Burke, explico melhor a minha posição.
Burke não afirma que deva ser proibida a ascensão social dos indivíduos. O que ele defende é que para o desempenho de um cargo de poder o indivíduo de ascendência mais humilde deve provar mais; o indivíduo pertencente a uma família rica não precisa de o fazer pois a sua ascendência demonstra que ele à partida será mais capaz (independentemente de, lá está, poder haver excepções).

Por outro lado, a sua defesa da concentração da propriedade é também um princípio de defesa da hierarquia social: usando um argumento "ceteris paribus", para um homem como ele Portugal seria sem dúvida um país mais civilizado que qualquer outro do continente europeu, dado que é o que tem mais desigualdade na distribuição de rendimentos. A propriedade, concentrada, é melhor defendida (a História tirar-lhe-ía a razão, mas isso são outros quinhentos).
Uma sociedade que tenha maior desigualdade na distribuição de rendimentos será, à partida, menos dinâmica: a hierarquização social cristaliza-se.

Igor Caldeira disse...

Aceitei o comentário da Elizabete Joaquim, mas não o consigo ver aqui, demo do que copio-o:

"Posso facilitar a discussão e perguntar-lhe directamente se o «liberal social» de que fala não é um socialismo com tendência progressiva para o liberalismo.

Acerca das diferenças entre liberalismo e progressismo, o que acha disto: http://www.youtube.com/watch?v=C2oOoCdFblc "

Quanto à primeira questtão, é ao contrário: a social-democracia é que foi um caminhar do socialismo para o liberalismo. O que o liberalismo social pretende é impedir que haja distorções às condições que todos os liberais idealmente concebem. Todos os liberais defendem a economia de mercado, mas alguns liberais acham que é aceitável haver monopólios ou oligopólios, e que se isso acontecer, bom, é o desenvolvimento natural da liberdade dos indivíduos, mesmo que isso implique que a partir de dado momento os indivíduos já não possam ser livres dado que o mercado deixou de existir.

Desta forma, há um conjunto de nomes que incluem não só "liberalismo social" mas também "novo liberalismo" (não neo-, embora há umas décadas essa confusão fosse possível - Rosanvallon chamou neoliberal a Rawls e colocou-o no mesmo saco que Nozick), "liberalismo radical" (ignoro se poderá em rigor ser assimilado ao radicalismo)... ou "liberalismo progressista".
Daí precisamente a denominação usada por Hillary Clinton.

Esta utilização de outra designação para além do liberalismo serve para distinguir do liberalismo dito "clássico" que é apenas um conservadorismo que economicamente é relativamente liberal (e friso o relativamente, porque o intervencionismo estatal não se restringe à posse de empresas); ou seja, o liberalismo social (ao contrário de outras formas de liberalismo) exige liberalidade a dois níveis, social e económico.
Como escreve o militante do LibDem que eu citei, os liberais clássicos extirpam do liberalismo a ideia ética para ficarem apenas com as vantagens económicas. Isso não faz grande sentido, pelo menos não de um ponto de vista teórico.