terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Uma coisa chamada risco

[...] pode-se dizer que a ideia de retribuição (da falta) desalojou a de atribuição (da acção ao seu agente).
[...]
Poderíamos regozijar-nos com esta evolução, na medida em que, através dela, se encontra exaltado um valor moral importante, a saber, o da solidariedade, sem dúvida mais digno de estima que o mais utilitário de segurança. Mas os efeitos perversos deste deslocamento podem colocar-nos em alerta. Tais são encorajados pela incrível extensão da esfera dos riscos e pela sua mudança de escala no espaço e no tempo [...]. Tudo se passa como se a multiplicação das ocorrências de vitimização suscitasse uma exaltação proporcional da necessidade de se apelar a um ressurgimento social da acusação. O paradoxo é enorme: numa sociedade que só fala de solidariedade, como cuidado de reforçar electivamente uma filosofia do risco, a procura vindicativa do responsável equivale a uma reculpabilização dos autores identificados de danos.
Paul Ricoeur, Le Juste



Quando uma explosão ocorreu num prédio em Setúbal e vários automóveis ficaram danificados, um dos moradores não se lembrou de fazer a coisa por menos: dado que vários dos afectados não tinham seguro contra todos os riscos e de qualquer forma as seguradoras se furtavam a dar sinais de desejar cumprir as suas obrigações, então o Estado tinha de "se chegar à frente" e avançar com o dinheiro para cobrir aquela "calamidade" (quem o ouvisse presumiria que tinha ocorrido um tsunami ou um terramoto).

Agora que o aeroporto já não vai para a Ota, os otários que tentaram antes do tempo construir dezenas e centenas de fogos e foram impedidos temporariamente querem pedir indemnizações. Porquê, não se percebe: só faria sentido construírem algo como a Quinta do Brandão, área onde estava prevista a construção de 2200 fogos se por acaso o aeroporto para ali fosse. De modo que o promotor imobiliário fez apenas aquilo que é inerente ao negócio: tentou adiantar-se, submetendo-se aos riscos inerentes à actividade.

Tanto no primeiro como no segundo caso, tanto na situação de cidadãos comuns como no de empresas de grande dimensão prevalece a ideia de que o Estado (ou seja, todos nós) deve cobrir todos os efeitos dos riscos próprios à vida (ou seja, ao acto de viver): se não fizeram um seguro decente, a culpa não sabem de quem é, mas o Estado é que tem de pagar; se são especuladores e a coisa dá para o torto, o Estado é que tem a culpa e a bem ou a mal tem de cobrir os danos próprios da actividade (só não se percebe por que é que não partilham também com o Estado os resultados da especulação - e não, os negócios nas autarquias não contam para efeitos de cálculo da partilha).

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