Pedras Vivas, Pedras Mortas
António Sérgio, defendendo a democracia e o cooperativismo, afirma que Todo o cooperativismo é por natureza antiestatal[1] e que Só a democracia social o interessa[2]. Não são, por conseguinte, as instituições políticas ou o seu poder que o ocupam primariamente, mas a sociedade e os indivíduos.
Sérgio, nas suas Cartas do Terceiro Homem, discorre por múltiplas vezes sobre a questão dos meios e dos fins. Fá-lo afirmando que há qualquer coisa acima da técnica; fá-lo parafraseando André de Gouveia quando disse que Já Vossa Alteza sabe que hei-de trabalhar por edificar pedras vivas […] e se por usar disto me não fizerem o que é feito a outros, por edificarem pedras mortas, com toda minha pobreza me tenho por mais rico […].
A questão dos meios e dos fins está então em usar dos meios (a edificação das pedras mortas) para atingir os fins (a melhoria das condições de vida das pedras vivas da grei – passe-se o pleonasmo) e de não inverter esta relação, obrigando as pessoas a vergar-se às obras. A justiça na definição dos meios para atingir o objectivo da justiça entre os homens (ideia, que pese a distância, encontramos também em Rawls) evitaria os males advenientes da medicina do tipo [a que Sérgio chama] do António Maria (Fontes Pereira de Melo).
Para o autor, como para Herculano, as obras materiais, os melhoramentos materiais não passam de uma contra-senha dos reaccionários[3] que baralham e confundem os objectivos para que o poder se mantenha como um receptáculo de corrupções. O que importará será seguir as medicinas sociais do tipo do José Xavier (Mouzinho da Silveira), centradas nas populações. Estas medicinas exigem um conceito fundamental, a emancipação, que em Sérgio podemos desdobrar em dois: participação e liberdade.
Participação e Liberdade
Dir-me-á Você que é bem difícil obra a de conciliar a faina da ordenação das coisas, a eficiência prática, com o respeito das pessoas e com a participação de todos.[4] Justamente a isto, quer o autor responder. Desde logo, uma análise da relação entre meios e fins desde uma perspectiva de justiça social faz com que Sérgio afirme que necessidades como a do aumento de produção só o são na medida em que delas resultem benefícios para o povo. Ora, os benefícios económicos só podem aqui resultar em favor do povo na medida em que ele se associar pelo cooperativismo, modelo de organização económica que emancipa da carestia de vida pela distribuição justa de bens, que emancipa na medida em que aqui trabalhar para os demais é trabalhar para si mesmo e por fim que emancipa por atribuir a cada um o poder de participar da condução dos destinos da sua comunidade.
As cartas XXI a XXIV dedica-as o autor à barragem e às gentes de Vilar da Veiga. Fá-lo para exemplificar a necessidade de haver a participação do povo nas decisões que afectem a sua vida, comparando com o exemplo de sucesso da Junta do Vale de Tennessee. Porque nos Estados Unidos não houve a superstição das obras e se pretendeu que todos tomassem parte na definição do projecto, essa foi uma obra de sucesso. Pelo contrário, no Cávado foram os capitalistas executores do projecto [que decidiram] da sorte das pedras vivas da Grei[5], resultando na aceitação pela maioria dos expropriados de uma série de contratos ruinosos. Para evitar isto, pugna António Sérgio por duas coisas: uma educação que emancipe os indivíduos pelo esclarecimento e pelo trabalho, e um poder (todos os poderes) que, numa condição quase cristológica, labore para deixar de ser necessário: o melhor político, como o melhor pedagogo, é aquele que com a máxima simplicidade e humildade trabalha constantemente por se tornar dispensável; é o que treina o povo para se governar por si mesmo[6] - passagem que já anteriormente aqui citei.
O Homem do Meio
É ao pugnar por um tipo de homem capaz de libertar e de se libertar, por conseguinte por uma abordagem antropológica, que Sérgio mais se distingue de outras abordagens. Este homem não pode nem cair no ingénuo romantismo nem no materialismo prático. Não pode ser um homem que defenda o autoritarismo puro nem o libertarismo indisciplinado – no meio dos dois extremos terá de existir o Terceiro Homem: o Homem do Libertarismo auto-disciplinado e reformador, defensor acérrimo da liberdade mas que não olvida a extrema dificuldade, a responsabilidade de ser livre. É nessa medida que a democracia não pode ser entendida como uma (lembrando Bocage) mãe dos prazeres mas como uma filha da custosa dominação de si próprio.[7]
Este é o homem que Sérgio quer que se faça (e que se faça livremente, a si próprio): na sua primeira carta, lembra Pascal, que afirmava que não é a opção por um extremo que mostra a nossa grandeza, mas a capacidade de tocar as extremidades e ocupar o espaço que as separa.
[1] In Cartas do Terceiro Homem: Democracia, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1974, pág. 281
[2] Pág. 272
[3] Pág. 215
[4] Pág. 135
[5] Pág. 225
[6] Pág. 190
[7] Pág. 206
António Sérgio, defendendo a democracia e o cooperativismo, afirma que Todo o cooperativismo é por natureza antiestatal[1] e que Só a democracia social o interessa[2]. Não são, por conseguinte, as instituições políticas ou o seu poder que o ocupam primariamente, mas a sociedade e os indivíduos.
Sérgio, nas suas Cartas do Terceiro Homem, discorre por múltiplas vezes sobre a questão dos meios e dos fins. Fá-lo afirmando que há qualquer coisa acima da técnica; fá-lo parafraseando André de Gouveia quando disse que Já Vossa Alteza sabe que hei-de trabalhar por edificar pedras vivas […] e se por usar disto me não fizerem o que é feito a outros, por edificarem pedras mortas, com toda minha pobreza me tenho por mais rico […].
A questão dos meios e dos fins está então em usar dos meios (a edificação das pedras mortas) para atingir os fins (a melhoria das condições de vida das pedras vivas da grei – passe-se o pleonasmo) e de não inverter esta relação, obrigando as pessoas a vergar-se às obras. A justiça na definição dos meios para atingir o objectivo da justiça entre os homens (ideia, que pese a distância, encontramos também em Rawls) evitaria os males advenientes da medicina do tipo [a que Sérgio chama] do António Maria (Fontes Pereira de Melo).
Para o autor, como para Herculano, as obras materiais, os melhoramentos materiais não passam de uma contra-senha dos reaccionários[3] que baralham e confundem os objectivos para que o poder se mantenha como um receptáculo de corrupções. O que importará será seguir as medicinas sociais do tipo do José Xavier (Mouzinho da Silveira), centradas nas populações. Estas medicinas exigem um conceito fundamental, a emancipação, que em Sérgio podemos desdobrar em dois: participação e liberdade.
Participação e Liberdade
Dir-me-á Você que é bem difícil obra a de conciliar a faina da ordenação das coisas, a eficiência prática, com o respeito das pessoas e com a participação de todos.[4] Justamente a isto, quer o autor responder. Desde logo, uma análise da relação entre meios e fins desde uma perspectiva de justiça social faz com que Sérgio afirme que necessidades como a do aumento de produção só o são na medida em que delas resultem benefícios para o povo. Ora, os benefícios económicos só podem aqui resultar em favor do povo na medida em que ele se associar pelo cooperativismo, modelo de organização económica que emancipa da carestia de vida pela distribuição justa de bens, que emancipa na medida em que aqui trabalhar para os demais é trabalhar para si mesmo e por fim que emancipa por atribuir a cada um o poder de participar da condução dos destinos da sua comunidade.
As cartas XXI a XXIV dedica-as o autor à barragem e às gentes de Vilar da Veiga. Fá-lo para exemplificar a necessidade de haver a participação do povo nas decisões que afectem a sua vida, comparando com o exemplo de sucesso da Junta do Vale de Tennessee. Porque nos Estados Unidos não houve a superstição das obras e se pretendeu que todos tomassem parte na definição do projecto, essa foi uma obra de sucesso. Pelo contrário, no Cávado foram os capitalistas executores do projecto [que decidiram] da sorte das pedras vivas da Grei[5], resultando na aceitação pela maioria dos expropriados de uma série de contratos ruinosos. Para evitar isto, pugna António Sérgio por duas coisas: uma educação que emancipe os indivíduos pelo esclarecimento e pelo trabalho, e um poder (todos os poderes) que, numa condição quase cristológica, labore para deixar de ser necessário: o melhor político, como o melhor pedagogo, é aquele que com a máxima simplicidade e humildade trabalha constantemente por se tornar dispensável; é o que treina o povo para se governar por si mesmo[6] - passagem que já anteriormente aqui citei.
O Homem do Meio
É ao pugnar por um tipo de homem capaz de libertar e de se libertar, por conseguinte por uma abordagem antropológica, que Sérgio mais se distingue de outras abordagens. Este homem não pode nem cair no ingénuo romantismo nem no materialismo prático. Não pode ser um homem que defenda o autoritarismo puro nem o libertarismo indisciplinado – no meio dos dois extremos terá de existir o Terceiro Homem: o Homem do Libertarismo auto-disciplinado e reformador, defensor acérrimo da liberdade mas que não olvida a extrema dificuldade, a responsabilidade de ser livre. É nessa medida que a democracia não pode ser entendida como uma (lembrando Bocage) mãe dos prazeres mas como uma filha da custosa dominação de si próprio.[7]
Este é o homem que Sérgio quer que se faça (e que se faça livremente, a si próprio): na sua primeira carta, lembra Pascal, que afirmava que não é a opção por um extremo que mostra a nossa grandeza, mas a capacidade de tocar as extremidades e ocupar o espaço que as separa.
[1] In Cartas do Terceiro Homem: Democracia, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1974, pág. 281
[2] Pág. 272
[3] Pág. 215
[4] Pág. 135
[5] Pág. 225
[6] Pág. 190
[7] Pág. 206
1 comentário:
Por que nao:)
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