Em A Crise do Estado-Providência, Pierre Rosanvallon argumenta que a crise, mais do que ser um facto económico, é antes de tudo um sentimento cultural: não é a redução da eficácia financeira (de resto, comum a qualquer grande organização, inclusivamente as grandes empresas) que põe em causa o Estado, mas a deslegitimação social, a pulsão para a liberdade individual ou o medo do controlo burocrático. Não há um qualquer limite concreto (lógicas próprias dos pensamentos marxista e liberal) ao crescimento do aparelho e das funções estatais – de resto, a tendência para o seu crescimento está inscrita no código genético do Estado moderno.
Rosanvallon parte do contratualismo para realizar tal afirmação. O Estado surge para proteger o indivíduo, detentor de um leque de direitos (da mesma forma que fora do Estado o indivíduo não pode livremente exercer tais direitos). O Estado é, desde o início, um Estado-protector que tem duas funções primordiais: a produção de segurança e a redução da incerteza. A par do indivíduo e inseparável dele, surge também a propriedade. Ela não é simplesmente uma questão própria de uma ideologia capitalista, ela é o que define o indivíduo. A propriedade em Adam Smith, por exemplo, não é apenas uma questão de property, mas também de propriety, ela define o indivíduo, separa o meu, o teu, o dele; ela não é só ter, ela é antes de tudo ser: livre, proprietário de si próprio.
Entretanto, conviria relembrar que a passagem do Estado-protector ao Estado-Providência estava já prenunciada no processo revolucionário francês. De facto, em três dos textos fundamentais do período revolucionário francês, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a Declaração dos Direitos do Homem (dita girondina), e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (dita montagnarde) é notório um conflito intestino e que se desenrola no próprio seio do pensamento contratualista. Ao passo que a primeira tem uma influência mais fortemente lockeana, na segunda, o art.2º é denunciador de uma alteração notória. A igualdade aqui deixa de ser uma condição, abstractamente concebida. Ao introduzir a palavra “gozo”, o legislador acaba por remeter a igualdade de direitos para um formalismo que carece de medidas pró-activas que a materializem. É a partir do artigo 22º que a Declaração girondina apresenta uma ruptura mais clara face a 1789. De facto, quatro dos seus trinta artigos dedicam-se em exclusivo e inequivocamente a questões de âmbito social: a educação, a assistência pública e a garantia social dos direitos, pedras angulares do Estado Social encontram aqui a sua sede, e a igualdade dos cidadãos e o dever de todos garantirem que cada um possa gozar dos mesmos direitos vão aqui buscar a sua fundamentação legal. Na Declaração montagnarde o artigo referente à assistência social (o XXI, e que surge à frente do artigo referente à educação) apresenta-se bem mais explícito e muito mais socializante que anteriormente. Em verdade, este artigo estipula a obrigação da sociedade em apoiar os mais desfavorecidos, quer pela concessão de trabalho, quer pela concessão de meios de subsistência aos que já não se possam prover a si próprios. Nos artigos II e III encontramos uma duplicidade da igualdade: ela tanto é considerada como um direito (art. II), como uma condição (nos termos do art. III, há igualdade de todos “por natureza e perante a lei”), o que constitui de certa forma uma tensão; a igualdade encontra aqui uma clara expressão da sua problematicidade, que se arrasta até aos nossos dias, entre o formalismo que se limita a afirmar a igualdade e o materialismo que defende a sua concretização.
Ora, a transição entre o Estado protector de direitos formais e o Estado que providencia a sua concretização é, nas palavras do autor, um duplo movimento de radicalização e de correcção. Ele segue a lógica própria do Estado-protector, dando-lhe coerência e procurando garantir que o indivíduo é verdadeiramente livre, tão igual quanto possível… e fraterno para com os outros indivíduos, quer queira, quer não (o imposto e a coerção estatal que lhe subjaz servindo de garante da solidariedade).
A elevação das aspirações dos indivíduos acima das necessidades primárias, o fortalecimento do pensamento utilitarista, a laicização e o desenvolvimento da ciência estatística (que substituem a incerteza da Providência religiosa pela certeza ou pela probabilidade mais favorável de uma providência estatal) completam este movimento. Ao longo dos séculos XIX e XX, cada momento de crise serve para redefinir o contrato social – e aprofundar o desenvolvimento do Estado. Isto é especialmente visível nos períodos após as duas Grandes Guerras. Face à tendência opressora dos Estados ditatoriais, as democracias foram provando a sua superioridade sendo agentes de libertação do indivíduo e pacificadoras da sociedade.
Onde nasce então a crise? A partir da década de 70 do século XX, o Ocidente vê-se confrontado com um período de recessão, ou de menor crescimento económico. Mais do que grave por si mesma, a crise económica põe em causa a inelutabilidade do progresso: a crise, mais do que económica, é uma crise das representações do futuro. A isto se juntam a deslegitimação do crescimento do Estado nas décadas anteriores pela ausência de conflito (ou seja, não houve episódios violentos nos quais a sociedade exigisse mais bens públicos, mas apenas um movimento mecânico e burocrático), a discordância face a fenómenos de correcção de pequenas desigualdades, gerando situações de injustiça social e por fim a balcanização da sociedade e a clientelização do Estado (que começa a operar cada vez mais em função de interesses alheios aos públicos).
Tudo isto traz à tona uma das características mais relevantes do Estado moderno: para defender o indivíduo, ele anulou a sociedade. A proclamada fraternidade/solidariedade falhou pois não pode resultar de um automatismo (nem de direita nem de esquerda, nem do mercado nem do Estado) mas de uma moral social, ou, se preferirmos seguir a linha de pensamento de Cortina, de uma ética pública cívica. A ineficácia económica do Estado-Providência resultará mais das formas de socialização que induz que do grau de socialização da riqueza.
Ao contrário da defesa de uma ética pública cívica, os neo-liberais defendem uma concepção atomista: o Estado, a sociedade, a política e a ética perdem toda a relevância: só o indivíduo, numa perspectiva absolutamente radical, enquanto um todo perfeito e solitário, resta. Este ser isolado da sociedade dispensa a alteridade e não entra em conflito: o indivíduo neo-liberal baseia-se na unanimidade pela indiferença pelo outro. A liberdade torna-se não-ética e não-política: ela é o resultado de um processo de maturação de uma racionalidade estratégica e a democracia não é mais que uma tecnologia social criada para manter este conceito reducionista de liberdade. Este indivíduo desligado do outro só pode aceitar um Estado que, ao invés de se limitar pelo mercado (Burke e Humboldt já tinham afirmado que isso não é plausível) é imerso pelo mercado, dissolve-se nele e na apoliticidade.
Tendo como ponto de partida a crise do Estado e rejeitando a alternativa neoliberal, Rosanvallon propõe um caminho alternativo, de certa forma híbrido.
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