terça-feira, 29 de maio de 2007

A Sociedade Autogerida (ainda Rosanvallon)


Sair da dicotomia estatização/privatização é o fundamental da proposta de Rosanvallon. Não se trata de eliminar o público, mas de permitir que o público seja mais que simplesmente o estado[1]. Quais os grandes problemas levantados por esta tensão? Fundamentalmente dois. Um primeiro é sobretudo um sintoma: o descrédito e o desespero, mais ou menos sentido e mais ou menos assumido nas sociedades regidas pelo compromisso keynesiano (que reduz a sociedade a relações de classe), uma ausência de sentido do presente e uma ausência de perspectivas de futuro. O segundo grande dilema, este focado igualmente por Cortina[2] é o do distanciamento dos cidadãos entre si e face ao Estado. Estando as relações de solidariedade institucionalizadas, absorvidas pela Estado-Providência, os cidadãos sentem como menos legítima a intervenção estatal em vários domínios (sendo obrigatório relembrar que essa deslegitimação é também fruto do próprio sucesso socio-económico e político do Estado-Providência). Adela Cortina opõe-se a esta ideia da solidariedade institucionalizada, dado que a solidariedade é um valor que cada um deve ter em relação a outro indivíduo, mas que não é passível de institucionalização. É a ideia (errada, a seu ver) de que a solidariedade pode estar em instituições que tem gerado o seu descrédito. É neste sentido que defende que o que é necessário, não é um Estado-providência no sentido de Estado de bem-estar, mas um Estado social de direito, enquanto Estado de justiça capaz de garantir a satisfação de níveis mínimos e irrenunciáveis do ponto de vista ético de direitos (pelo menos) de segunda geração (para lá dos de primeira geração).
Esta libertação da exclusividade de dois caminhos, um economicamente insustentável e outro socialmente ruinoso, implica uma recentragem nos objectivos que estão por detrás do surgimento, primeiro do Estado-protector e depois do Estado-providência, nomeadamente a prestação de serviços públicos[3]. A questão económica, instrumental, deve ceder o passo à questão de fundo, não começar pelo questionamento do custo do serviço público, mas do que ele é e de como podemos garantir a sua prestação. A pergunta deverá ser cultural (filosófica, política), não técnica – e a resposta, para o autor, deverá ser societal, não institucional. Não se trata então de uma rendição a uma racionalidade estratégica que está aqui em causa, de dizer que não há possibilidade de as sociedades garantirem aos indivíduos a existência de mínimos de dignidade em nome da eficiência; não foi o princípio da subjugação do económico que falhou, foi a forma como foi feita essa subjugação que, após décadas de sucesso, soçobrou.
Há, então, que reconstruir os laços de solidariedade entre os indivíduos socializando (desburocratização), descentralizando (serviços de proximidade) e autonomizando (transferindo a sua prestação para entidades – associações, fundações, instituições de solidariedade social – não estatais) os serviços públicos. Trata-se pois de fazer aumentar a visibilidade dos laços sociais, embora haja duas ressalvas a fazer. Por um lado, Rosanvallon rejeita qualquer mito comunitarista baseado na crítica do Estado moderno: foi em grande parte devido às vastas redes sociais que esmagavam o indivíduo (as quais, por conseguinte, tinham como principal característica não a solidariedade mas a opressão) que esse mesmo Estado surgiu. Por outro lado, e em coerência com o que acabámos de referir, o Estado mantém-se como um elemento fundamental.
A questão está em redefinir o espaço público e em revitalizar a cidadania (como Cortina afirma, a coisa pública só será de todos se for nossa[4] tornando a sociedade mais transparente. Naturalmente, uma sociedade mais transparente é também uma sociedade na qual o conflito será mais frequente – mas será também uma sociedade na qual o conflito será encarado não como uma fraqueza, mas pelo que ele é (uma decorrência da vida em conjunto) e pelo que ele pode ser de uma forma construtiva, um incentivo ao melhoramento dos mecanismos de regulação pacífica do conflito, ou seja, da democracia. Esta regulação pacífica tem de passar por um triplo compromisso: um económico, com as empresas (as quais devem, não apenas exigir, mas também permitir uma maior flexibilidade laboral); um político, com o Estado (o qual deve comprometer-se com uma redução do seu peso, permitir o desenvolvimento de um “espaço de associação humana sem coerção”[5] e aumentar as liberdades civis); e um compromisso da sociedade consigo própria, um compromisso social baseado na democracia e que revitalize a noção de contrato social.


[1] Em Hasta un Pueblo de Demonios Cortina relembra-nos igualmente que não podemos esquecer que “público” não é sinónimo de “estatal”.
[2] Ciudadanos del Mundo – Hacia una Teoría de la Ciudadanía, pp 70-76
[3] Rosanvallon fala em “serviços colectivos”, expressão que me parece menos apropriada por ser mais identificável com o Estado que com algo tão plural quanto a sociedade; a expressão “público” apresenta-se como bastante mais ampla e flexível, como já apontámos na penúltima nota.
[4] Hasta un Pueblo de Demonios, pág. 189
[5] Michael Walzer, citado por Adela Cortina em Hasta un Pueblo de Demonios, pág. 191

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