sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Habermas - A recusa do cientificismo

Habermas refere no seu ensaio dedicado em 1968 a Marcuse Técnica e Ciência como “Ideologia”[1] que o sistema de dominação de tipo tecnocrático comporta-se de forma distinta dos sistemas repressivos tradicionais na medida em que justamente põe de parte a repressão violenta. Ao invés, despolitiza a convivência social e direcciona-a para fins “racionais”. Deste modo, a sobrevivência da tecnocracia é garantida através da mobilização de toda a sociedade para a revalorização do capital e [a] distribuição das compensações sociais que assegura a lealdade das massas[2].
O progresso técnico-científico não tem, para além disso, a formatação tradicional de ideologia, no sentido em que não tem nenhum projecto nem emancipatório nem repressivo do homem enquanto tal, ou pelo menos não o assume. Enquanto fundamento de legitimação de uma estrutura dominante, a ciência [surgindo como] um feitiço[3] esconde a sua verdadeira face; não é agressivamente repressiva porque reprime a emancipação antes que ela nasça. Satisfaz as necessidades materiais e, não sendo apenas ideologia, não sendo sistematizada, torna-se de certa forma inefável.

As sociedades enquadradas pelo novo Estado industrial galbraithiano põem menos ênfase nas questões normativas; não é a coerção dos comportamentos que se exerce, porque os comportamentos são controlados indirectamente por estímulos condicionados[4]. Pode-se assim excluir de qualquer questionamento a respeito da revalorização do capital e da distribuição das compensações: as duas variáveis da tecnocracia elevam-se acima da política, a tecnociência dispondo de um progresso autónomo e dela dependendo o crescimento económico. É assim compreensível que nas democracias modernas não estejam em causa as questões práticas, tornando-se as eleições meras decisões plebiscitárias acerca de equipas alternativas de administradores[5]. É ao desafio do apriorismo tecnológico, determinante de um apriorismo político (formulação utilizada por Marcuse em One-dimensional Man) que o autor pretende responder.


Habermas refere Huxley quando este afirma que é de alguma forma contraditório o facto de os cientistas, vivendo no mundo sem vida das abstracções controlem o mundo em que os homens têm o privilégio e estão condenados a viver. Afasta-se dele quando este afirma que a literatura deveria incorporar a linguagem científica, explicando que a ciência só tem relevância para o mundo social da vida através dos seus efeitos – não através da sua linguagem. A literatura, que seria por conseguinte um meio de formação privada não responde à questão fundamental; a tradução das informações científicas para a consciência prática[6] tem de ser realizada de modo diferente – na formação de vontade política.

Aqui, o autor define os conceitos de técnica (sistema em que a investigação e a técnica se encontram com a economia e a administração e são por elas retro-alimentadas) e de democracia (formas institucionalmente garantidas de uma comunicação geral e pública que se ocupa das questões práticas: de como os homens querem e podem conviver […]). Os dilemas colocados pela técnica não são resolúveis com mais técnica. São, outrossim, geríveis no seio de um inter-relacionamento entre saber e poder técnicos e saber e querer práticos. Para o autor, a dinâmica entre querer e poder já se realiza, mas fora do espaço público, fora do debate político e sem consciência política. Em oposição, a força libertadora da reflexão tem de pôr em contacto um querer esclarecido a respeito do progresso científico e um poder autoconsciente das suas implicações socio-políticas. Isto conduz-nos então às respostas ao desafio lançado pela tecnicização.

[1] Versão portuguesa, Edições 70, Lisboa, 2001
[2] Pág. 81
[3] Pág. 80
[4] Habermas exemplifica com o consumo, comportamento eleitoral e a utilização dos tempos livres. A crítica ao “condicionamento” não deixa de recordar a mais influente obra de Aldous Huxley.
[5] Pp. 73 e 74
[6] Pág. 101

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