Através do
Devaneios cheguei a um post interessante do blogue
Teologia777. Nesta crítica ao "
Fundamentalismo Ateu" há duas coisas que eu gostaria de comentar e que me parecem muito importantes.
Antes disso, no entanto, gostaria apenas de dizer que há coisas que é preciso que fiquem claras. Eu não me coíbo de dizer o que entender a respeito das crenças num blogue, embora respeite e tenha noção que há espaços em que me devo calar. Para dar um exemplo muito concreto, recordo-me de há um ano um casal de amigos se ter casado pela igreja. O padre tinha um discurso reaccionário, e que noutras circunstâncias eu contestaria veementemente. Os meus amigos, quase todos ateus ou agnósticos mas todos ou quase todos muito menos "radicais" que eu cochichavam e criticavam em surdina o que o padre dizia. Eu e outro amigo, ele um convertido ao catolicismo, éramos os únicos que estávamos calados e atentos ao que o padre dizia. Em jeito de brincadeira, os meus amigos chegaram a perguntar-me se eu me estava a converter.
Mas não. A questão era muito simples. Eu estava dentro de uma igreja e numa cerimónia de dois amigos. Em respeito da crença alheia, da instituição na qual me encontrava e dos meus amigos, o meu dever era assistir calado. Se me sentisse violentado, então devia retirar-me. Mas fazer pouco da crença ou do discurso dentro daquele espaço, lamento, mas não é comigo.
Isto não me impede de, fora do adro da igreja, então aí desmontar o discurso do padre, dizer que naquilo concordei, nisto discordei, esta parte me pareceu bem colocada e aqueloutra parte do discurso me repugnou. Porque esta é coisa que muitos católicos têm uma dificuldade imensa em perceber: há um espaço social da igreja, e há um espaço público. No espaço público, têm de aceitar ser tratados tal qual como os outros, com exactamente os mesmos critérios e guiando-nos todos por padrões universalmente aceitáveis de um ponto de vista racional (e não como mera negociação com base na correlação de forças).
Quem ler o meu blogue, e mais ainda quem me conhecer pessoalmente pode achar que eu tenho um ódio infindável à religião. Não é isso. Eu não me poderia estar mais nas tintas para a religião. O que me incomoda é o seu carácter político. É isso o que muitos crentes - os católicos conservadores, os fundamentalistas islâmicos, os judeus ortodoxos, os fanáticos evangélicos - têm dificuldade (impossibilidade?) em compreender e aceitar. Que a sua religião não deve ter um valor político e que, em sociedade, temos de encontrar uma ética mínima, uma ética pública, uma ética racional.
Aqui vão então as frases:
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A imagem de Deus, muitas vezes apresentada nestes blogs, é de um Deus mau, tirano e ainda para mais criado para oprimir e explorar as classes mais pobres e menos instruídas.
Não se pode apresentar a imagem de um deus mau e simultaneamente ser ateu. Eu sou ateu e não acho que deus seja mau porque deus não existe. É uma criação dos homens, e portanto as suas qualidades são as qualidades dos homens que o criam. Como não há ninguém que possa provar que a sua imagem de deus é a verdadeira, então concluímos que há pelo menos tantos deuses como os seus crentes - ou mais até, dado que há crentes politeístas.
É interessante lembrar a perspectiva de Feuerbach, para quem deus concentrava todas as características da espécie humana no seu todo (omnipresença, omnisapiência, etc.) dado que deus era apenas uma ideia abstracta para representar a humanidade. Sob esse ponto de vista, o demónio seria também a mesma coisa, mas concentrando todas as nossas características negativas.
Portanto, e reiterando a ideia, eu não apresento nenhuma ideia de deus como um ser mau. Deus não é nada senão uma ideia, uma criação, uma invenção. Será, portanto, tudo aquilo que o seu criador quiser que seja.
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Por norma os sites ateístas em português são anti-clericais
Ora aqui está uma coisa importantíssima. Não posso falar pelos outros, mas falo por mim. Eu sou ateu; mas o meu ateísmo é uma coisa pessoal. Não pretendo converter ninguém ao ateísmo. E acho a discussão "deus existe ou não" um pouco disparatada. Não há provas da existência de deus, e isso é tudo. Eu posso dizer que estão homenzinhos no meu computador que fazem com que ele funcione - mas posso prová-lo? Não. Portanto, ou acredito, ou não acredito. Não se pode discutir racionalmente sobre o assunto porque, ao contrário do que muitos crentes querem fazer crer, a crença é pura irracionalidade; admito que haja uma "racionalidade" na crença, mas não uma racionalidade pura. Será uma racionalidade estratégica, uma muleta para lidar com o esmagamento que a ideia de solidão ou de finitude ou de falta de significado que a existência pode ter, ou para garantir um cimento social, especialmente em sociedades imaturas e para as quais a ideia de uma comunidade composta por homens que são fins em si próprios e não meios para fins maiores simplesmente não cabe. É um utensílio, um meio, não uma verdade ou um facto.
Por conseguinte, posso até fazer pouco da crença de alguém, posso até dizer que determinada parte da crença é desumana e inaceitável, da mesma forma que os crentes dizem coisas inacreditáveis dos não-crentes ou de outros crentes. Isso é uma coisa. Eu trato disso a nível pessoal e gostava (embora saiba que é impossível) que todos os crentes mantivessem a sua crença e a sua crítica a outras crenças ou à descrença a um nível pessoal, privado. A nível político, sim, eu sou anticlerical. E como poderia não ser? Eu defendo um Estado laico. Portanto, qualquer tentativa de qualquer religião de tomar o poder será por mim combatida. Da mesma forma que se alguém tentasse declarar o Estado ateu seria por mim combatido. Eu defendo um Estado imparcial, um Estado que não conceda nenhum privilégio nem promova qualquer discriminação com base na crença ou descrença. O que pode e deve existir é a garantia de que os direitos dos indivíduos sejam garantidos. Ideologicamente identifico-me com o liberalismo e o radicalismo e portanto para mim a absoluta soberania do indivíduo sobre si próprio é (essa sim) sagrada. Portanto as religiões farão tudo o que entenderem, mas se quiserem defender que as mulheres sejam veladas, que as suas roupas sejam presas com cadeados, que a homossexualidade seja proibida, que a actividade bancária (usura) seja proibida, o Estado tem de intervir. Não por ser contra as religiões, mas porque a Modernidade e o Estado que as revoluções liberais instituíram serviram para libertar o indivíduo de todos os elementos opressivos. Eu compreendo que isto é algo abstracto, mas tentemos fazer o exercício da imparcialidade. Não é agirmos com os outros como gostaríamos que os outros agissem connosco, mas agir por forma a que os critérios da nossa acção permitissem a convivência pacífica de todos os seres racionais e, mais que isso, a criação de uma comunidade com valores realmente partilhados em que cada um fosse respeitado não pela sua força ou pela sua crença ou pelo seu sexo ou por qualquer outro critério, mas simplesmente por ser.
Portanto, e em resumo, sim, eu sou anticlerical - no sentido de laicista - e sou-o antes de ser ateu. Ateu é apenas uma propriedade do fenómeno Igor. Ser laicista é uma condição para se ser um verdadeiro cidadão.