quinta-feira, 5 de julho de 2007

Libertarianismo e Liberalismo - I - O libertarianismo moderado de David Gauthier

Não vou discutir aqui quem é mais liberal em termos genealógicos; esse tipo de discussão, tradicional nos meios marxistas, parece-me algo triste, desconsoladora e própria de quem não tem mais nada a que se agarrar do que umas citações soltas que à sua própria guisa interpreta consoante o desejo e a necessidade do momento. Quero, pelo contrário, situar-me no debate contemporâneo entre o liberalismo (social), representado por Rawls e o libertarianismo (moderado) de David Gauthier.
Ambos afirmam o compromisso com o valor da Liberdade. Sendo eu um defensor de Rawls, quero tentar apresentar de forma desapaixonada uma exposição do pensamento de um autor actual e de grande relevância no panorama da Filosofia Moral - apesar de secundário quando comparado com Rawls - e com o qual não concordo. Este será o objecto deste post.
  • As much Land as a Man Tills, Plants, Improves, Cultivates, and can use the Product of, so much is his Property. […] God, when he gave the World in common to all Mankind, commanded Man also to labour, and the penury of his Condition required it of him. […] Nor was this appropriation of any parcel of Land, by improving it, any prejudice to any other Man, since there was still enough, and as good, left; and more than the yet unprovided could use.
    John Locke, Two Treatises of Government, An Essay Concerning the True Original, Extent and End of Civil Government, capítulo V, Of Property
Pretendo aqui apresentar uma das interpretações que a expressão lockeana enough and as good gerou, nomeadamente a de David Gauthier. A cláusula de Locke consiste numa das visões possíveis do princípio da apropriação original, um dos três fundamentos da corrente libertarista ou libertária (a par da propriedade de si e da justa circulação). Consiste este princípio na afirmação de que o primeiro titular do direito de propriedade sobre algo é aquele que primeiro reivindicar a sua propriedade. Na variante mais à direita deste princípio (Kirzner) este princípio afirma-se por si só (quem primeiro chegar terá direito à propriedade do objecto, independentemente das consequências que isso acarrete para os outros. A versão libertária deste princípio mais à esquerda, inspirando-se em Thomas Paine, limita a apropriação através de uma distribuição igualitária do valor dos produtos da terra. Por fim, e no centro destas duas versões, surge a posição sustentada pela cláusula de Locke e desenvolvida por, entre outros, Gauthier e que consiste resumidamente no direito de todos a uma parte pelo menos equivalente ao que teriam tido no estado de natureza.

Gauthier socorre-se da interpretação que Nozick dá da cláusula de Locke e segundo a qual esta tem como objectivo não piorar a condição de ninguém – ou seja, que pelo facto de aceitar viver em sociedade, ninguém seja relegado para uma situação pior que a que tinha no estado de natureza. Caso contrário, e numa interpretação literal de Locke, poder-se-ía afirmar que a apropriação do que quer que fosse, seria proibida. Por outro lado, esta proibição de piorar o estado de alguém também tem de ter uma limitação; defendendo Locke a autopreservação, Gauthier completa a cláusula: a condição de não piorar a condição de ninguém face à natureza é limitada aos casos em que tal não implique um piorar da minha própria condição.
Locke parte do princípio que cada pessoa começa com um direito de exclusividade sobre o seu corpo, e que estende esse direito a objectos através do seu trabalho. Contudo, para Gauthier a cláusula desempenha um papel mais vasto. Ela permite a passagem do estado de natureza hobbesiano para uma posição inicial de interacção social, convertendo a condição predadora de Hobbes para uma posição de produção, mas, para além disso, formata também as estruturas do posterior jogo social em todas as suas formas (competitivas ou cooperativas). Mais ainda, ela torna-se no garante de imparcialidade da negociação.
A cláusula lockeana consiste numa limitação ao exercício das liberdades; no entanto, ela não impede ou limita essas liberdades em si (o que seria inaceitável para um libertário). A diferença fundamental está em que, ao contrário do que sucede com Hobbes, em que a liberdade natural consiste em utilizar o nosso corpo e o corpo dos outros como nos aprouver, aqui a liberdade limita-se à utilização do nosso corpo. Assim, por um lado confirma-se o direito de cada um a utilizar o seu corpo e os seus poderes e por outro garante-se o direito exclusivo de cada um a utilizar o seu corpo sem ser coagido por outrem. Geram-se desta forma, ao invés de liberdades ilimitadas, direitos e deveres exclusivos.
Gauthier contrapõe a sua própria visão à de John Rawls. Para este, a distribuição dos benefícios dos talentos naturais deve ser realizada de forma a beneficiar o conjunto da sociedade – independentemente da real distribuição dos talentos. Assim, para Rawls, os indivíduos deveriam negociar a sua posição inicial na sociedade não só no que concerne aos direitos iniciais aos bens, mas também aos direitos iniciais aos poderes pessoais e capacidades. Fundamentar-se-ia tal perspectiva na ideia de que ninguém tem nenhum direito intrínseco às suas faculdades (de certa forma, a sua distribuição será aleatória).
O que Gauthier vem afirmar, é que sendo certo que ninguém merece as faculdades com que nasceu, ainda assim as capacidades naturais, o corpo e os seus poderes, são a única coisa que cada um traz para a sociedade. Desta forma, não podem estar excluídas da determinação do que cada um pretende obter da sociedade. Um princípio só pode definir imparcialmente o que cada um pode beneficiar com a sociedade se em contrapartida se souber o que cada um pode obter sem a sociedade. Não há sequer, nem pode haver, qualquer princípio de redistribuição, pois a única compensação que pode haver é a compensação pela partilha dos bens comuns (materiais), pois aí há uma distribuição provocada. Pelo contrário, a distribuição dos talentos (não se aceitando uma visão teísta, como a de Locke – e nem Hobbes, nem Gauthier, nem Rawls enveredam por esse caminho) não resulta de um plano divino; é um facto que não tem produtor – portanto, nenhum “culpado”, nenhuma vítima.

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