quinta-feira, 5 de julho de 2007

Libertarianismo e Liberalismo - II - Tradição ou Modernidade

Afirmam os liberais-conservadores (e bem assim os produtos similares e deles resultantes - neoliberais, libertarians, neoconservadores e anarco-capitalistas) que a tradição é uma das bases do pensamento liberal. Pretendem assim e através de uma afirmação que visa estabelecer uma discussão (presumindo que querem discutir e não apenas repetir os seus próprios dogmas para que alguém os oiça) limitar logo à partida o próprio debate com um elemento que nele não é fundamental.

De facto, o que é fundamental no debate sobre o liberalismo não é nem a defesa da tradição nem o ataque às tradições; o ponto de partida só pode ser um e tem de ir à raiz. Liberalismo vem de liberdade e a liberdade aqui é a do indivíduo (não da comunidade). Arrisco mesmo a dizer que liberalismo e individualismo se equivalem. Portanto, o que temos de discutir não é se as diversas versões do liberalismo se adaptam à tradição, mas se a tradição se adapta à promoção da liberdade individual. Não colhe por isso a afirmação dos liberal-conservadores de que o liberalismo social por não sacralizar as tradições e a religião está excluído do liberalismo. É um argumento viciado. O que é necessário que provem é que o conservadorismo liberal promove melhor a liberdade individual que o liberalismo social.

duas ressalvas que eu quero fazer antes de mais avançar. A primeira tem que ver com a afirmação de José Manuel Moreira (professor de Economia e autor de vários livros, entre os quais um medonho A Contas com a Ética Empresarial) no livro Liberalismos: Entre o Conservadorismo e o Socialismo de que o liberalismo social é um perigoso cavalo de Tróia do socialismo. Como o título do seu livro bem demonstra, no entanto, e na mesma lógica, o liberal-conservadorismo (no qual ele se inclui, indiscutivelmente) será igualmente um cavalo de Tróia do conservadorismo. Para mim a questão é não obstante um pouco mais complexa que a defesa de imaginárias quintas ideológicas. Já disse isto algures e repito: o liberalismo é a ideologia mãe da Modernidade, definindo a maior parte das ideologias que lhe sucederam (seja pela positiva, no caso da social-democracia ou no conservadorismo democrático, seja pela negação como o comunismo, o fascismo e o tradicionalismo conservador - veja-se Salazar ou as posições da Igreja). O que o liberalismo social faz é reconciliar as duas vertentes do liberalismo que o século XIX cindiu: o progressismo social para a esquerda, a economia de mercado para a direita.
A segunda ressalva prende-se com alguma prudência na assimilação do libertarianismo e do liberalismo conservador. É um facto que as conclusões a que chegam são iguais, mas partem de posições que nem sempre são iguais.

De facto, a maior diferença entre o liberal-conservadorismo e o libertarianismo é precisamente onde é colocada a tónica: na valorização da tradição ou na valorização do indivíduo. Ao passo que o libertarianismo segue o raciocínio de Gauthier (ou seja, a liberdade é a liberdade do indivíduo enquanto ser em si), a liberdade para o liberal-conservadorismo é a liberdade no seio de uma cultura, um povo, uma tradição. Não há liberdade abstracta, não há direitos humanos em sentido próprio. Aqui, o universalismo é uma aberração.
Assim, pode-se afirmar que o liberal-conservadorismo não é um liberalismo em sentido próprio. Tem de facto um elemento altamente individualista do ponto de vista económico, mas o indivíduo liberal-conservador é um indivíduo unidimensional - a sua liberdade é apenas aquela que o jogo económico lhe permitir. Em tudo o resto está ele submetido a valores e instituições que o transcendem. O objectivo não é o de responder ao apelo da Modernidade - o apelo liberal por excelência - de garantir que o indivíduo seja não uma partícula de uma mole mas um todo em si mesmo digno. Como não há indivíduo em abstracto, mas apenas no seio de culturas particulares, o indivíduo não tem (ao contrário do que sucede nos liberalismos) direitos abstractos - apenas aqueles que cada sociedade e cada época lhe conceder (o que de resto apresenta um óbvio risco de relativismo cultural).
O objectivo é aqui então não a defesa do indivíduo, mas a defesa de uma cultura instituída. Se isto o diferencia do libertarianismo, não é menos verdade que (apesar de menos pronunciadamente) o seu individualismo económico pode permitir alguma distinção face a outros conservadorismos. Nomeadamente, o conservadorismo tem uma dimensão economicamente mais comunitária e esteve na origem de algumas das construções do Estado Social (relembremos Bismark ou, entre nós, o governo de Marcello Caetano). A questão está em que a retórica liberal-conservadora esconde a razão fundamental do seu individualismo económico. Enquanto o conservadorismo tout court pretende garantir a autoridade da tradição pela pacificação social, o liberal-conservadorismo prefere que a economia de mercado deixada sem regulação gere a submissão social. Em ambos a maior desigualdade possível é factor positivo (como Burke escreveu, a propriedade defende-se concentrado-a), mas enquanto no primeiro caso se pretende manter que o Estado se responsabilize pela pacificação social, no segundo receia-se que a busca de pacificação social gere um desenvolvimento imparável da intervenção económica do Estado.


Em suma, se o liberal-conservadorismo tem os mesmos objectivos que o conservadorismo (a submissão do indivíduo a uma ordem social dada) utiliza no entanto os meios do libertarianismo, o que está na origem da assimilação dos mesmos. Do ponto de vista teórico, estará errado; o primeiro pertence à família conservadora, o segundo à família liberal. No entanto, politicamente os resultados são os mesmos e permitem que pelo menos parte da crítica feita a um seja aplicável ao outro.

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