Gostaria de retomar a reflexão sobre o libertarianismo e o liberalismo, fazendo no entanto uma digressão por dois campos que estão fora do liberalismo mas que o definem pela negativa, o conservadorismo e o socialismo. Era algo que já estava em rascunho mas que não tinha concluído e que o confronto com o livro de Ayaan Ali me leva a retomar.
Tratando-se esta minha reflexão sobretudo um ataque à infeliz mania portuguesa de chamar liberalismo ao libertarianismo, concentrar-me-ei na exposição do pensamento conservador, mas o foco deste texto é outro: a afirmação de que a raiz do multiculturalismo de esquerda e das posições morais conservadoras sobre a tradição são a mesma.
Para Edmund Burke, os direitos de gozar dos benefícios da constituição da sociedade civil pertencem a todos os homens: os direitos são iguais para todo o homem, independentemente de se tratar de um nobre, de um burguês, de um homem do povo. Esses direitos são a justiça, o direito de ser julgado apenas pelos pares (defesa de uma Sociedade Ordens), o direito aos frutos do seu trabalho e a multiplicar esses frutos, bem como a conservar tudo o que os seus parentes lhe houverem legado. Todos os homens têm direito a alimentar e instruir a sua prole, e intruir-se também. Tem, por fim, o direito de ser consolado e acompanhado na sua morte. Em suma, ele tem o direito de fazer tudo aquilo que não lese os direitos de outrem. No entanto, a distribuição destes direitos, dos bens (materiais e imateriais) resultantes da associação política, não é igualitária, mas antes proporcional à contribuição que cada um dá ao conjunto. Os benefícios serão assim distribuídos na exacta proporção da contribuição que cada indivíduo der à sociedade. Posto isto, convém clarificar que Burke distingue direitos naturais, directos e originários, que pertencem a todos independentemente do estatuto social, e direitos convencionais, os direitos que resultam da associação dos indivíduos em corpos políticos. Assim, o direito a uma parte da autoridade, como direito convencional, depende dos termos dessa convenção, da “constituição”, e como já se viu, esse direito está consagrado àqueles que possuam o talento e a propriedade, e não a qualquer um. E esta regra, Burke defende-a afirmando que os homens não podem gozar concomitantemente dos direitos do estado natural, e dos direitos da sociedade civil: ao constituirem sociedade, os homens aceitaram implicitamente que o poder será entregue a alguns apenas. Um outro direito por Burke defendido é o direito à limitação das paixões, ou seja, a garantia dos outros direitos. E o autor não se refere apenas à moderação das paixões ou arrebatações pessoais, mas também tudo aquilo que faça com que os homens ajam colectivamente e em massa. Para tal, será necessário um poder independente, ou seja, algo que esteja acima destas paixões, e ao qual por isso seja confiada a competência de dominar e reprimir tudo aquilo que ponha em causa a ordem. Por fim, diga-se que Burke considera que os direitos (que incluem liberdades tal como restrições) são variáveis ao longo do processo histórico e sofrem constantes modificações. Salvaguarde-se e sublinhe-se ainda que os direitos que Burke defende são os direitos dos ingleses, e não da Humanidade: amante do concreto que é, não poderia enunciar um conjunto de direitos que valessem de forma universal em todas as sociedades.
As Reflexões de Burke são feitas sob a pressão das críticas que os britânicos simpatizantes da Revolução Francesa fazem à Constituição histórica da Inglaterra. Desta forma, este texto não pode ser entendido apenas como um escrito académico, mas também como um escrito de combate político, de resposta aos ataques dos sectores radicais. Um dos temas principais do debate entre Burke, por um lado e Paine e Price por outro foi a interpretação da Revolução francesa face à Glourious Revolution. Se os segundos afirmam que a transformação que a França conheceu no final do século XVIII é um desenvolvimento e um aprofundamento – uma consequência natural – da revolução britânica de há um século atrás, Edmund Burke contrapôs a sua visão, centrada na defesa de uma diferença distintiva fundamental: é que a revolução de 1688 visou restaurar uma situação anterior; a revolução que estala em 1789, pelo contrário, teve como objectivo criar uma nova ordem, aniquilando a ordem construída pelos homens ao longo da História. Há, por conseguinte, uma oposição frontal entre um paradigma racionalista e progressista e um paradigma empirista e conservador.
Hegel defendeu, contra Kant (e à semelhança de Burke) a eticidade, ou seja, a concretização da ética nos valores e princípios próprios de cada comunidade. Este conceito de eticidade não só se adapta ao pensamento conservador como também, como é sobejamente conhecido, o hegelianismo influenciou o pensamento de Marx e por via deste, boa parte das modernas correntes socialistas. Quanto as Direitas atacam o multiculturalismo de Esquerda não o fazem por discordância com o sentido profundo do multiculturalismo, mas sim pelos seus opositores políticos pretenderem universalizar o respeito pelas diversas manifestações culturais. Por seu lado, as Esquerdas confundem-se nas suas tendências humanistas e na sua defesa do universalismo. No fim, ao invés de defenderem o universalismo racional, defendem o pluralismo de subjectividades contraditórias entre si e, bastante mais grave, contraditórias muitas vezes com os ideais que deveriam mover as Esquerdas.
É por este motivo, de resto, pela sua relativa imunidade face ao pensamento hegeliano que o liberalismo consegue ser o melhor defensor da moralidade kantiana, ou seja, do pensamento crítico-abstracto que pugna pela obrigatoriedade do respeito por mínimos éticos. Com isto não quero escamotear o contributo do socialismo e do conservadorismo democráticos na defesa dos Direitos Humanos, mas vivemos em tempos interessantes. Tempos interessantes são aqueles que são agradáveis de analisar e desesperantes para se viver. Ora, é interessante que Ayaan Ali tenha sido tratada como foi pelos Trabalhistas e acolhida pelos Liberais.
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