terça-feira, 26 de junho de 2007

A degradação do Individualismo no Anti-estatismo primário


Muitas das discussões que vou lendo no mundo dos blogues tem que ver com um suposto pecado ominoso que consistirá na intervenção do Estado em matérias como a sexualidade. Exemplos disso foram as recente críticas ao artigo do Luís Lavoura sobre educação sexual, à intervenção de Teresa Caeiro no debate da ILGA ou (ainda mais disparatadas) ao cartaz da JS relativo ao Dia de Luta contra a Homofobia (ao que parece, não só o Estado, como também nem sequer os partidos podem já defender causas). Não vou aqui tratar de criticar o facto de muitas dessas pessoas apenas criticarem o intervencionismo moral do Estado quando se trata da sexualidade (se falarmos do racismo, algumas já aceitarão). Não vou também colocar a (muito válida) hipótese de muitas dessas pessoas serem contra toda a intervenção do Estado que vá num determinado sentido (para falar de forma clara, toda a intervenção progressista) mas serem fortes apoiantes do intervencionismo destinado a manter ou reforçar situações de liberdade limitada e de desigualdade, seja material seja formal.

Vou, pelo contrário, partir do pressuposto que pelo menos uma parte dessas pessoas é bem intencionada, sabe do que fala e tem de facto o desejo de garantir a maior liberdade possível a cada indivíduo. Sei que estarei, no entanto, a falar para um auditório minúsculo, mas assim seja.


Aquilo que me parece distinguir a defesa do Individualismo do Anti-estatismo sistemático (automático, irreflectido) é uma confusão entre meios e fins. Ao fim e ao cabo, por que motivo devemos nós (se devemos) ser contra o Estado? O que pode fundamentar uma tal posição? Será o Estado um demónio? Conterá ele ou será ele um Mal radical, nos termos em que Kant por exemplo o definiu (um mal que é praticado consciente e voluntariamente)? Terá ele uma natureza insuperavelmente má? Há quem assim pense - os anarquistas - embora, tirando os seus primeiros teorizadores (Proudhon) nenhum explique como pretenderia manter a sociedade em funcionamento e aniquilar o Estado sem o substituir por algo que seria um Estado sem se chamar Estado (um pouco como os imperadores romanos, que eram monarcas mas que não se podiam chamar reis para não ferir os sentimentos republicanos). Os neoliberais ensaiaram algo nesse sentido, embora em momento nenhum expliquem cabalmente por que motivo as "agências de segurança privada" deveriam regular-se ou ter o monopólio da violência legítima dentro de um determinado território, dado que supostamente eles são a favor da concorrência.


Pois bem, por que razão devemos então ser contra o Estado? É esse o nosso fim, ou será esse um meio?

Se dizemos que esse é o nosso fim, então entendemos que de facto o Estado encarna um mal radical; optaremos pelo anarquismo, pelo feudalismo (aliás, provável consequência lógica do anarquismo, seja de Esquerda, seja de Direita, mas não quero ir por aí) ou por qualquer outra ideologia e forma de organização social que tarde ou cedo redundará num sistema igual ao Estado, mas sem se chamar Estado e pior do que o Estado Moderno (porque despido de todo o aparelho cultural que ao longo de dois a três séculos se tem esforçado por modular e confinar a sua actuação). No entanto, recordo, não é a esse auditório que me dirijo. Ora, a alternativa é entendermos a posição anti-estatista como um meio. Questionemo-nos então, um meio para quê?

Podemos entender o combate ao Estado como um meio egoísta para a aquisição de mais poder (político, económico, religioso). Assim, o nosso objectivo é diminuir o Estado para a ele nos substituirmos, ou seja, a esta diminuição do Estado não corresponde mais liberdade para os indivíduos, mas uma transferência de poder opressivo. Esta é uma posição bastante frequente, por exemplo, entre os fundamentalistas cristãos e muçulmanos, bem como um fenómeno muitas vezes associado a situações de capitalismo incontrolado. É uma postura ainda menos aceitável que a anterior. A anterior postura é desastrosa embora bem intencionada. Esta encarna (ela sim) um mal radical, uma consciente vontade de praticar o mal.

Podemos, por fim, entender que o combate ao Estado deve ser um meio para a libertação dos indivíduos. Só aqui encontramos de facto uma posição individualista - ou seja, uma posição que faça de cada indivíduo um fim e não um meio (é isto o Reino dos Fins). Como o fim é o indivíduo e a sua liberdade e o combate ao Estado é um meio, não nos limitamos a reconhecer que o Estado existe e tem de ser limitado; somos compelidos a afirmar que o Estado existe e tem de existir. O motivo? Bom, quem não o percebeu ao fim de mais de duzentos anos de Modernidade não sei se alguma vez poderá compreendê-lo, mas vou dizê-lo: o indivíduo é cerceado na sua liberdade por uma infinidade de circunstâncias; algumas vêm da Natureza, outras vêm do Estado e outras vêm da sociedade (que não é a mesma coisa que o Estado e creio que aqui podemos estar todos de acordo). Da Natureza o Homem não pode esperar muito, dado que não depende, em última instância, de si. Resta então o Estado e a sociedade, dois mecanismos que temos de saber manejar, não como alvos de uma crítica cega e, bom, acrítica, mas como construções culturais que podem e devem ser equilibradas como se do sistema de checks and balances se tratasse e sempre tendo em conta que a defesa ou o ataque de um ou de outro não são fins em si, mas exclusivamente meios.


Posto isto, as discussões depois recairão sobre se achamos ou não que o racismo, o machismo, a homofobia, a pobreza, o fundamentalismo religioso, o extremismo político cerceiam ou não a liberdade dos indivíduos. No entanto, já não encararemos a questão da mesma maneira; se de facto entendermos que uma ou várias das situações que agora enunciei limitam a liberdade dos indivíduos, passaremos a discutir como podemos pôr em marcha os meios que poderão remover esses males, o que nos levará a tanto agir enquanto seres sociais, como enquanto cidadãos políticos, ou seja, tanto defenderemos na nossa vida quotidiana, individual ou grupalmente, o combate a tais situações, como exigiremos do Estado que lhes ponha um travão. O nosso fim não será então ser contra algo, mas ser a favor de alguém. Esta é a diferença fundamental entre o anti-estatismo primário e o individualismo sincero.

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