domingo, 17 de junho de 2007

Provocações Meritocráticas Parte III - Do Conservadorismo ao Nazismo

Quem for minimamente inteligente terá de concordar que a defesa da superioridade do sangue sobre o mérito (ou seja, das limitações da hereditariedade sobre a liberdade do indivíduo que se faz a si próprio) como Burke fazia, tem de facto um cheiro a nazismo.

Não quer isto dizer que Burke excluísse o mérito - quer antes dizer que ao mérito reservava ele um papel puramente secundário. O grosso da sua teoria é a defesa dos privilégios do sangue e da maior desigualdade possível. E passo a prová-lo.

Deveremos começar por esclarecer primeiramente o conceito de igualdade. A igualdade em Burke consiste numa igualdade moral, em que cada grupo cumpre escrupulosamente a sua missão – e é esta a felicidade e a virtude de cada grupo, e que se transfere depois para cada indivíduo, ao cumprir a sua função social. Cada indivíduo desempenha um trabalho, e nenhum trabalho é desonroso. Mas será um erro considerar que os múltiplos trabalhos são indistintos. Tal constitui, para Burke, uma grave injustiça: Os homens desta classe [indivíduos que exerçam trabalhos servis] não devem ser oprimidos pelo Estado; mas é o Estado que é oprimido quando se-lhes permite, seja colectivamente, seja individualmente, governá-lo. Todos os cargos, desde os mais baixos aos mais importantes, devem a todos estar acessíveis, (...)mas não indiferentemente a não importa quem. Nem só ao sangue (à nobreza) devem os cargos mais notáveis estar reservados, mas também a quem os conquiste por seu mérito pessoal, através de um percurso no qual o indivíduo demonstre a sua virtude. E o caminho que leva aos mais distintos lugares da sociedade deve ser longo e duro, pois só aí a virtude se mostra na sua plenitude.

Já analisámos, então, a articulação entre igualdade e mérito; e já se depreende o papel que a propriedade desempenha aqui. Se a meritocracia está presente em Edmund Burke, também é verdade que Burke não lhe dá grande espaço de manobra: o lugar principal reserva-o à propriedade. Pretende assim que o talento não degenere em ambição desmedida, e ouse usurpar a propriedade, o que resultaria num desequilíbrio violento do edifício socio-político. Esta primazia da propriedade deve-se ao desejo de defendê-la, portanto. Para defendê-la, Burke defende a sua máxima concentração: quanto maior a concentração, mais benéficos serão os seus efeitos para o conjunto, e mais facilmente a propriedade se poderá defender, assim garantindo a estabilidade da sociedade. E é aqui que o autor faz uma defesa frontal da desigualdade: A essência característica da propriedade, tal como ela resulta da conjugação dos princípios da sua aquisição e da sua conservação, é a desigualdade.

Em conclusão, Burke defende os privilégios materiais e sociais, pois são o talento e principalmente a propriedade que devem deter a representação. A igualdade, remete-a para o plano da moral, de uma ética social.


Desigualdade e sangue: estes dois princípios irão, na Alemanha do século XIX, começar a produzir efeitos catastróficos. Segundo Barrington Moore, o Fascismo é uma das três vias de transição das sociedades tradicionais para as sociedades modernas (a par da Democracia e do Comunismo). Ele surge como uma forma reaccionária, militarista e totalitarista do desenvolvimento capitalista. Há uma "revolução a partir de cima", ou seja, um grupo de funcionários do Estado e os seus aliados (sectores da burguesia) formam um acordo muito fechado e sem oposições com o objectivo de criar um mercado que não se opõe mas antes apoia a centralização política. Porque não há forças que se oponham ao Estado, há uma confluência de de interesses, sendo os sectores dominantes, as elites, responsáveis uma grande alteração social (na expansão da educação, na economia de mercado, na criação de um mercado nacional). Assim, e na inexistência de classes dominantes suficientemente independentes do Estado para operar a modernização, ela é feita pelas elites burocráticas. O fascismo emergiu sobretudo nos late developers (Alemanha, Itália, Países Ibéricos), o que em grande medida se deveu ao facto de as condições que permitiram o desenvolvimento económico das nações pioneiras já não se colocarem. Nem todas as estratégias de desenvolvimento estão disponíveis para os que mais tarde se desenvolvem, pois as economias mais avançadas rapidamente ocupam o mercado internacional.
Na Alemanha é um acordo entre Estados e privados que promove o desenvolvimento. O Estado cresce sem oposição, nem burguesa (caso inglês), nem camponesa (caso francês), pois a classe empresarial está dependente do investimento público. A sociedade camponesa alemã dos finais da Idade Média tinha semelhanças com a França e a Inglaterra. No entanto, em Inglaterra essa sociedade foi destruída pelas enclosures, dado que era um obstáculo à acumulação capitalista; em França, a sociedade camponesa não foi destruída, mas fortemente abalada na sua interacção com outros grupos, conduzindo à Revolução.

Na Alemanha, contudo, os junkers (nobreza fundiária) sobreviveram, e a sociedade camponesa foi reorganizada para a exploração capitalista, sobretudo na Prússia. A produção cerealífera era muito forte, mas foi abalada fortemente pela inundação dos mercados internacionais por produtos americanos, nos finais do século XIX. Seguindo uma tendência socio-política da nobreza alemã (inclinada para impedir uma reorganização da produção e a industrialização), a servidão campesina é restaurada neste período, com o senhor feudal a recuperar os seus laços de propriedade com os trabalhadores agrícolas. Esta questão acabaria por se plasmar no nazismo, sendo das noções aristocráticas de superioridade (social - junkers/camponeses; étnica, porque muitos dos servos eram de origem eslava) que resulta muito da ideologia nazi.
A pequena e fraca burguesia não consegue romper com a nobreza, que reage ao desenvolvimento capitalista e impede que o campesinato abandone a sua condição, mantendo-se assim uma sociedade camponesa que vai servir uma acumulação capitalista por parte dos junkers. O reforço da servidão acaba por servir a aristocracia, que explora os campos capitalistamente, numa situação paralela à verificada no sul dos EUA. Assim, os proprietários de terras são simultaneamente empresários capitalistas, o que significa que conseguiram adaptar-se às transformações económicas.

Na Alemanha dá-se uma fusão entre burguesia e nobreza em torno do Estado. A burguesia precisa da nobreza para aceder aos fundos do Estado, controlado por uma elite burocrática oriunda da classe terratenente, militarista e imbuída do espírito de se superioridade. A classe burguesa abdicou da sociedade de liberdade para ter uma sociedade estável que lhe permita a acumulação de capital. A ética burguesa do debate e da tolerância só se torna dominante em países como a Inglaterra, porque aí é a burguesia que tem a primazia. Já na Alemanha, é o contrário. O parceiro menor da coligação é a burguesia, que vai beber da ética aristocrática, defender a centralização estatal e a superioridade social e racial. O desenvolvimento industrial é orientado pelo Estado - ênfase na produção militar - e há uma necessidade de expandir o seu mercado e escoar os seus produtos (expansionismo alemão).

1 comentário:

Anónimo disse...

Há em Burke um preconceito ético e estético que o leva a favorecer, não só o sangue sobre o mérito, mas a tradição sobre a modernidade e a vontade sobre a razão. Laivos desta ética e desta estética aparecerão mais tarde em Carlyle e Nietzche, como nos modernistas* dos anos 20 e nos nazis e fascistas dos anos 30 e 40. Outro tema recorrente nesta estirpe de pensamento é a profunda desconfiança em relação à Razão, ao Iluminismo e às Luzes.

Até meados do século XX os conservadores e os reaccionários foram hostis ao mercado, o que os livrou do dilema que dilacera hoje a direita. Hitler, Mussolini, Franco e Salazar foram socialistas: condicionaram a indústria, ergueram barreiras alfandegárias, nacionalizaram sectores inteiros da actividade económica e criaram monopólios de Estado.

Os conservadores e reaccionários de hoje não dispõem desta facilidade. Têm que ser anti-socialistas porque precisam dum inimigo e por motivos óbvios não podem ser anti-semitas. Vêem-se assim dilacerados por duas pulsões fortíssimas que os empurram em sentidos opostos: por um lado a paixão pelo irracional, pelo orgânico, por tudo aquilo que encontra a sua legitimação no mistério e nas brumas do tempo; por outro a necessidade imperativa de agir racionalmente na economia.

Será possível ser racional na economia e convictamente irracional em tudo o resto? As incríveis contorções e acrobacias dum João César das Neves ou dum João Carlos Espada sugerem que não, como sugerem que não as crescentes fracturas entre as duas bases de apoio da direita americana - os fundamentalistas cristãos e os fundamentalistas de mercado.

Para os reaccionários de hoje, suspeito que o terrorismo islâmico caiu como sopa no mel. Finalmente, um inimigo externo! Melhor ainda, um inimigo interno! Finalmente, a oportunidade longamente esperada de deitar a democracia ás urtigas!

E os neo~liberais, ou liberais neoclássicos, ou seja lá o que for que eles chamam a si próprios? Esses, o melhor é tomarem as suas precauções: estão a caminho de deixar de ser úteis como aliados e é tarde demais para serem úteis como inimigos. Ninguém os vai prender nem matar, hoje as tiranias são muito mais subtis: mas correm o risco de ser declarados irrelevantes.

* Um tema recorrente no modernismo é o desgosto com a modernidade e a nostalgia pela austeridade, simplicidade e coerência duma era perdida