quarta-feira, 20 de junho de 2007

Cultura, Multiculturalismo e a "superioridade" do Ocidente

A razão por que a civilização atingiu o seu ponto mais elevado entre os povos cristãos não é ser-lhe o Cristianismo favorável, mas o facto de o Cristianismo estar morto e já não exercer grande influência: enquanto exerceu a sua influência, a civilização manteve-se a um nível muito baixo entre os povos cristãos. Toda a religião é adversária da cultura.
A má consicência que a religião deve ter pode ser avaliada pelo facto de ser proibido troçar dela sob pena de severos castigos.
Schopenhauer
Num post de Maio já tinha, a partir do texto revolucionário Lynn White Jr. The Historical Roots of Our Ecological Crisis, abordado a questão do desenvolvimento tecnológico do Ocidente, embora numa perspectiva da crise ambiental. No entanto, gostava de dar uma achega ao tema por outro prisma. No texto em causa defende-se, abreviadamente, que foi a conjugação entre o pragmatismo romano, o antropocentrismo bíblico e a rudeza do meio e do clima do noroeste europeu que produziriam, vários séculos mais tarde, aquilo que alguns autores (Hermínio Martins, por exemplo) chamam hoje a civilização da tecnociência.
Creio que esta perspectiva não é descabida e que pode dar algum contributo ao tema do multiculturalismo e do que é ou não ocidental. Em todos os debates em que se trata do fundamentalismo islâmico, parece por vezes haver convergências nas críticas ao radicalismo religioso que são contra-natura. Nomeadamente, vemos muitas vezes progressistas a defender posições que aparentemente são iguais às dos conservadores e até de reaccionários. No entanto, essa convergência realmente fica-se pela aparência - os motivos que fundamentam as posições de uns e de outros são absolutamente distintos.
De facto, conservadores e reaccionários ocidentais criticam o Islão simplesmente porque ele é um concorrente: concordam ambos na intolerância, mas odeiam-se mutuamente por defenderem doutrinas distintas. No entanto, quando têm de enfrentar os progressistas, aliam-se com a maior das canduras aos muçulmanos. Exemplo disso foi a posição da Igreja Católica a respeito dos cartoons dinamarqueses. Naquele momento havia valores mais elevados a preservar: a proibição da crítica à religião e o ataque à liberdade de expressão. Uma espécie de Pacto Germano-Soviético versão século XXI.
Daqui resulta aquilo que eu pretendia reforçar: se na Europa ou na América do Norte temos autoridade moral (porque a temos, de facto) para criticar o obscurantismo alheio, não é por a cultura que nos envolve ser religiosa, mas porque a religião foi sendo remetida para a esfera privada. Se a religião comandasse a nossa política, a nossa economia e as nossas relações sociais estaríamos tão atrasados quanto atrasados ficaram tantos outros povos que, hoje, nos querem impôr os mais atávicos costumes. Não cedamos a obscurantismo nenhum - nem o caseiro nem o alheio.

8 comentários:

cãorafeiro disse...

http://armadilhaparaursosconformistas.blogspot.com/2006/02/pelo-universalismo-contra-o.html

caro igor, para mim a melhor forma de contrariar o argumento de que determinados valores são estritamente ocidentais é procurarmos dar a conhecer o pensamento de pessoas não ocidentais que também defendem as teses universalistas. neste post cujo link aqui deixo encontrarás um excerto de um discurso de taslima nasreen precisamente sobre a questão que referes neste post.

Marco Oliveira disse...

Quando na Andaluzia Islâmica existia iluminação pública, Londres era uma pocilga. (esta frase é pronunciada por um sheik árabe no filme Lawrence da Arábia)

As civilizações nascem crescem, morrem; algumas parece que renascem...

Quem conhece um pouco de história, sabe que a religião islâmica foi fonte de inspiração da civilização e cultura islâmica.

Os motivos da decadência islâmica é que deviam ser analisados. Porque é que uma civilização brilhante chegou a este ponto e parece querer continuar a degradar-se ainda mais?

Igor Caldeira disse...

Olá cãorafeiro (já agora, as minhas desculpas por te ter anteriormente tratado pelo sexo masculino, entretanto e pelo que li no Devaneios enganei-me :-) ) estive a ler o texto e, claro está, gostei. Concordo com a tua opinião - talvez se apresentarmos visões de pessoas que não concordam com as suas "especificidades" culturais haja mais gente progressista no Ocidente a abrir os olhos.

Olá Marco, os motivos são tantos... não conheço nenhuma tese sobre o assunto. Costuma-se dizer que um dos grandes culpados da queda do mundo muçulmano foi o expansionismo ocidental. No entanto, parece-me muito simplista. Por que não falar, por exemplo, da lenta decadência resultante de múltiplas invasões vindas sobretudo de oriente. Os mongóis, por exemplo, que devastaram Bagdad. Nos séculos seguintes, boa parte do mundo muçulmano (e árabe) foi instabilizado pela concorrência entre turcos e persas. Um dos meus escritores favoritos, Amin Maalouf, pode dxar algumas pistas - embora sendo a maior parte dos seus livros romances, seja sempre um relato muito parcial.

cãorafeiro disse...

marco: a decadência começou logo com a criação do califado omíada...

quando uma religião consegue obter poder temporal, o caldo fica logo entornado...

não se deixe levar por uma cisão romântica do islão. vale a pena estudar a história e a culyuta islâmica, mas é fundamental resistir a quelquer visão idílica.

o islão até certa altura foi um enorme foco de criação cultural, porque, numa altura em que a região do mediterrâneo foi domiada pelo cristianismo, o islão permitiu aos pensadores uma margem de liberdade muito maior.

por exemplo, basta ver o facto de que o conceito de deus no islão é muito mais apelativo intelectualmente.

num momento em que na europa tudo o que era pré-cristão era deitado para o lixo o surgimento do islamismo permitiu que não se perdesse uma parte consideravel do manancial de conhecimentos da antiguidade clássica, e nomeadamente da grécia.

mas passado não muito tempo o islão tornou-se quase tão intolerante como o cristianismo...isso tem a ver com as conquistas do islão em termos de poder temporal. quando uma religião obtém poder temporal, está tudo estragado.

ainda assim, por muito que custa a acreditar, convém dizer que o islão é mais tolerante que o cristianismo enquanto religião. o islão sempre tolera a existência do cristianismo e do judaísmo,por serem monoteístas. no entanto, todas as outras religiões, como o budismo, o hinduísmo, etc, foram brutalmente perseguidas pelos conquistadores muçulmanos. o cristianismo não poupou nenhuma religião.

o que sucedeu na europa foi que nos conseguimos libertar da tutela do cristianismo... graças a pessoas como giordano bruno, ou voltaire...

e de facto a questão do expansionismo ocidental é muito simplista.

igor: não há desculpas a apresentar, eu é que crio a confusão por ter escolhido um nick masculino...

Marco Oliveira disse...

caorafeiro,

Concordo com praticamente tudo o que escreveste.

Só dois reparos:

"a decadência começou logo com a criação do califado omíada..." --> A mim parece-me uma perspectiva simplista; uma civilização desenvolve-se com avanços e recuos. Nem tudo pode ter sido mau com os Omíadas; caso contrário a civilização islâmica não se teria desenvolvido.

"...o islão é mais tolerante..." --> Eu diria "o Islão foi mais tolerante"

Anónimo disse...

O Islão foi grande e civilizado enquanto foi tolerante e enquanto não se levou demasiadamente a sério.
É verdade que enquanto na Andaluzia Islâmica havia iluminação pública Londres era uma pocilga. É verdade que enquanto em Baghdad o banho era um ritual diário e os perfumistas prosperavam, na Europa o costume era tomar-se um banho ao nascer e outro ao morrer. Tudo isso é verdade. E é verdade que enquanto os cristãos do Norte se embebedavam com cerveja, Omar Khayyám cantava o vinho...
Mas hoje o vinho, no Islão, é um crime. Omar Khayyám, se vivesse hoje, teria sido objecto duma fatwa e condenado à morte. O que nos encanta no Islão é a sua civilização passada, o que nos repugna é a sua barbárie presente. Tenhamos nós cuidado para não cairmos no mesmo, já que entre nós também não faltam bárbaros e fundamentalistas a sonhar com regimes teocráticos.

Igor Caldeira disse...

Marco, creio que o que a cãorafeiro disse foi que objectivamente o Islão, como está no Corão, é bem mais tolerante que o Cristianismo, tal como está na Bíblia. Não tendo eu lido o corão, quer-me ainda assim parecer que é verdade isto, pelo motivo que a cãorafeiro expôs: o islamismo admite a existência dos outros "povos do Livro" - tolera-os, embora os considere inferiores. Com o Cristianismo já não é de todo assim.

cãorafeiro disse...

marco: onde eu quis chegar foi à questão da ligação entre o poder religioso e o temporal.

isto sem negar os avanços técnicos e culturais obtidos nos califados omíada, ou abássida, etc...

se estudares o islão com alguma profundidade, e vale a pena fazê-lo, aconselho-te a prestar especial atenção à questão do direito islâmico, e às diferentes escolas de interpretação do direito.

essa é a chave para entender os problemas do islão.

lamento não ser mais clara, mas a questão é muito complexa.

quanto à tolerância relativamente a o cristianismo e judaísmo, tem a ver com o interesse do islão no proselitismo. o islão apresenta o judaísmo e o cristianismo como seus predecessores, sendo o islão a religião mais completa. não se trata de um conceito de tolerância no sentido moderno, poperiano do termo, mas de uma questão de interesse.

seja como for, é um facto comprovado historicamente que o islão é mais tolerante do que o cristianismo.

naturalmente que não me refiro ao wahabismo, que é um movimento recente, cujo sucesso se deve ao financiamento da arábia saudita.

por exemplo, quando os judeus foram expulsos da península ibéricas, foram acolhidos pelo sultão do império otomano.

até há não muito tempo, os judeus de marrocos e da tunísia conviviam pacificamente com os muçulmanos.

mas, temos de ter muito cuidado com a glorificação das sociedades humanas que existiram no passado, e muita prudência na maneira como estabelecemos continuidades com o passado.

caso estejas ou vás estudar o islão, muito cuidado com a propaganda disfarçada de conhecimento académico...