O fim da Tradição e a sociedade do Risco
Mefistófeles, à parte – Tu apenas trabalhas para nós, com os teus diques e as tuas margens; preparas assim uma grande refeição para o demónio do mar, Neptuno. Em todos os casos, perdeste. Os elementos pactuaram connosco, e tudo termina na destruição![1]
Ao ler esta passagem da obra de Goethe, a nossa memória recente conduz-nos à catástrofe que assolou Nova Orleães. No seu texto Politics of Risk Society, Beck afirma que as tentativas de controlar o futuro tornam mais provável que o imprevisível suceda[2].
Se, como Giddens e Beck afirmam, a fonte fundamental das nossas preocupações já não é (pelo menos directamente) o que a natureza pode fazer-nos, mas antes o que nós podemos fazer à natureza, isto significa que o trabalho do homem sobre a natureza acabará tendo reflexos sobre o próprio homem. Tradicionalmente, o homem temia (ou respeitava) a natureza; no entanto, ao longo de séculos tem-se intensificado um estado de guerra do homem para com a natureza. A imprevisibilidade torna-se por conseguinte de alguma forma o reverso das sucessivas tentativas de controlá-la. Este efeito boomerang põe a nu a interpenetração entre cultura e natureza[3].
A cultura surge aqui na medida em que, para além dos factos que nos vão surgindo, há uma interpretação desses factos e uma colocação de hipóteses, de factos virtuais que existem na medida em que neles cremos. A nossa pulsão para o controlo da natureza, que já não é da natureza apenas por si, mas também para o controlo dos efeitos reais ou hipotéticos e assumidos ou não[4] das retroacções do nosso trabalho sobre ela conduz-nos à questão de como podemos controlar os riscos. Essa é a tarefa que é confiada à ciência.
Mefistófeles, à parte – Tu apenas trabalhas para nós, com os teus diques e as tuas margens; preparas assim uma grande refeição para o demónio do mar, Neptuno. Em todos os casos, perdeste. Os elementos pactuaram connosco, e tudo termina na destruição![1]
Ao ler esta passagem da obra de Goethe, a nossa memória recente conduz-nos à catástrofe que assolou Nova Orleães. No seu texto Politics of Risk Society, Beck afirma que as tentativas de controlar o futuro tornam mais provável que o imprevisível suceda[2].
Se, como Giddens e Beck afirmam, a fonte fundamental das nossas preocupações já não é (pelo menos directamente) o que a natureza pode fazer-nos, mas antes o que nós podemos fazer à natureza, isto significa que o trabalho do homem sobre a natureza acabará tendo reflexos sobre o próprio homem. Tradicionalmente, o homem temia (ou respeitava) a natureza; no entanto, ao longo de séculos tem-se intensificado um estado de guerra do homem para com a natureza. A imprevisibilidade torna-se por conseguinte de alguma forma o reverso das sucessivas tentativas de controlá-la. Este efeito boomerang põe a nu a interpenetração entre cultura e natureza[3].
A cultura surge aqui na medida em que, para além dos factos que nos vão surgindo, há uma interpretação desses factos e uma colocação de hipóteses, de factos virtuais que existem na medida em que neles cremos. A nossa pulsão para o controlo da natureza, que já não é da natureza apenas por si, mas também para o controlo dos efeitos reais ou hipotéticos e assumidos ou não[4] das retroacções do nosso trabalho sobre ela conduz-nos à questão de como podemos controlar os riscos. Essa é a tarefa que é confiada à ciência.
A Fé Científica
A causa dos riscos, da incerteza produzida é atribuída por Beck à expansão permanente dos conhecimentos científicos. Mais uma vez, os factos e a interpretação social dos factos cruzam-se aqui, na medida em que, sendo real esta expansão, ela é interpretada como permanente – uma certeza. É esta certeza que fundamenta a resposta dada socialmente aos desastres ambientais: cada dilema será superado paulatinamente por novas descobertas científicas. Cada nova batalha entre o homem e a natureza será inevitavelmente vencida adicionando mais ciência – ou seja, mais instrumentos técnicos.
Assim, afirma o autor que há um erro basilar no entendimento da questão. É o sucesso da ciência que tem criado novos e crescentes riscos. Adicionar mais ciência – acriticamente, sem mais – é potenciar o risco. Para além desta questão, há ainda as diferentes perspectivas dentro do próprio meio científico. Encontrar unanimidade no que se refere a respostas às questões que vão surgindo é pelo menos difícil, senão simplesmente impossível, pelo que adoptar uma resposta em detrimento de outras não será nunca baseado exclusivamente em critérios científicos. Basear-se-á tal adopção sempre em questões de probabilidades e inevitavelmente será fruto de lutas resultantes de interesses sociais, económicos e políticos.
Uma outra questão a ter em conta será a de que o próprio conceito de ciência de alguma forma foi corrompido. Já não se trata actualmente apenas de ciência enquanto teoria e investigação. Também não se trata apenas sequer de uma investigação totalmente direccionada para a aplicação prática. Ambas estas abordagens estão ultrapassadas. Beck refere que a sociedade se tornou num laboratório. Assim, se antes tínhamos laboratórios nos quais se realizavam testes, os desenvolvimentos actuais da ciência forçam não raro a uma aplicação directa das novas descobertas (o autor dá como exemplo a tecnologia nuclear ou as biotecnologias). A barreira laboratorial que poderia proteger a sociedade de erros resultantes da investigação caiu e consequentemente já não é possível controlar efeitos indesejados. Ciência e técnica fundem-se nesta queda – temos assim o conceito de tecnociência de Hermínio Martins.
Legitimidade e Responsabilidade
Se aos problemas levantados pela tecnociência a sociedade responde delegando na ciência a tarefa de encontrar as respostas, há pelo menos dois processos, um de desresponsabilização colectiva e outro de legitimação do poder dos meios científicos – sem que tal corresponda a uma responsabilização desses mesmos meios. A prova disso mesmo é o facto de ser tão contestada a existência de efeitos retroactivos das descobertas técnico-científicas. Essa é de resto uma das dimensões da Sociedade do Risco para a qual Beck nos chama a atenção: a inexistência de responsabilidade suportada pelas burocracias, por ele descritas como formas de irresponsabilidade organizada.
A questão da desresponsabilização colectiva prende-se em grande medida com a dimensão política. No entanto, há que ter em conta também a questão económica. O grosso das decisões sobre investigação não é feito por agentes políticos, limitados pela legislação ou pela dinâmica socio-política. Em contrapartida, a indústria farmacêutica, por exemplo, dispõe de ampla capacidade de investimento, direccionamento da investigação e aplicação de novas descobertas.
Um último elemento de grande relevância referido por Ulrich Beck prende-se justamente com a evolução do papel do Estado. A questão da segurança é um dos elementos que fundamenta a luta contra o total desmantelamento do Estado providência. No entanto, se hoje esta luta se centra em questões como a da Segurança Social, Educação ou Saúde, precede-a a temática hoje ultrapassada da posse, por parte do Estado, de um forte sector empresarial. Este Estado interventor foi abandonado em nome do que se designa de Estado regulador, que asseguraria o bom funcionamento da economia. Contudo, o que se verifica hoje é que, incapaz de direccionar o investimento económico e científico, nem por isso tem maior poder de definir com critérios claros a quem cabe a responsabilidade quando nem tudo corre bem. Face a uma questão como a engenharia genética, Beck refere que ninguém consegue identificar em concreto quem está a conduzir o processo. O conceito de risco, que na economia privada é valorado positivamente, é omitido em tudo o que respeite a questões científicas – quando o risco emerge, os decisores políticos são os primeiros para quem a opinião pública se vira. Era a eles que competia regular. O facto de em situações-limite a sociedade lamentar a falta de regulação pública remete-nos para uma crítica da teoria do Estado regulador. A conclusão a que se chega é que ele não veio substituir o Estado directamente interventor. O que sucedeu foi antes uma pura retirada do Estado (e da sociedade). Estado e a sociedade demitiram-se na sua globalidade, configurando o que poderemos designar de apoliticidade. Precisamente quando a ciência e a economia se tornam eminentemente políticas[5], o espaço público tenta esvaziar-se da política.
Se aos problemas levantados pela tecnociência a sociedade responde delegando na ciência a tarefa de encontrar as respostas, há pelo menos dois processos, um de desresponsabilização colectiva e outro de legitimação do poder dos meios científicos – sem que tal corresponda a uma responsabilização desses mesmos meios. A prova disso mesmo é o facto de ser tão contestada a existência de efeitos retroactivos das descobertas técnico-científicas. Essa é de resto uma das dimensões da Sociedade do Risco para a qual Beck nos chama a atenção: a inexistência de responsabilidade suportada pelas burocracias, por ele descritas como formas de irresponsabilidade organizada.
A questão da desresponsabilização colectiva prende-se em grande medida com a dimensão política. No entanto, há que ter em conta também a questão económica. O grosso das decisões sobre investigação não é feito por agentes políticos, limitados pela legislação ou pela dinâmica socio-política. Em contrapartida, a indústria farmacêutica, por exemplo, dispõe de ampla capacidade de investimento, direccionamento da investigação e aplicação de novas descobertas.
Um último elemento de grande relevância referido por Ulrich Beck prende-se justamente com a evolução do papel do Estado. A questão da segurança é um dos elementos que fundamenta a luta contra o total desmantelamento do Estado providência. No entanto, se hoje esta luta se centra em questões como a da Segurança Social, Educação ou Saúde, precede-a a temática hoje ultrapassada da posse, por parte do Estado, de um forte sector empresarial. Este Estado interventor foi abandonado em nome do que se designa de Estado regulador, que asseguraria o bom funcionamento da economia. Contudo, o que se verifica hoje é que, incapaz de direccionar o investimento económico e científico, nem por isso tem maior poder de definir com critérios claros a quem cabe a responsabilidade quando nem tudo corre bem. Face a uma questão como a engenharia genética, Beck refere que ninguém consegue identificar em concreto quem está a conduzir o processo. O conceito de risco, que na economia privada é valorado positivamente, é omitido em tudo o que respeite a questões científicas – quando o risco emerge, os decisores políticos são os primeiros para quem a opinião pública se vira. Era a eles que competia regular. O facto de em situações-limite a sociedade lamentar a falta de regulação pública remete-nos para uma crítica da teoria do Estado regulador. A conclusão a que se chega é que ele não veio substituir o Estado directamente interventor. O que sucedeu foi antes uma pura retirada do Estado (e da sociedade). Estado e a sociedade demitiram-se na sua globalidade, configurando o que poderemos designar de apoliticidade. Precisamente quando a ciência e a economia se tornam eminentemente políticas[5], o espaço público tenta esvaziar-se da política.
O resgate da Modernidade
Perante uma ciência que já não pode garantir a controlabilidade dos riscos associados ao seu progresso e que, bem pelo contrário, transforma sociedades e países inteiros – na verdade, o planeta no seu conjunto – em cobaias dos seus projectos, urgirá restabelecer a supremacia da política e da moral sobre as opções que são tomadas. Se as opções tecnológicas afectam a sociedade, tem de ser a sociedade – e não os cientistas ou as empresas – a definir quais as opções a seguir e quais as opções a rejeitar. Há campos cada vez mais amplos que antes estavam imunes à influência política, dependendo antes da acção de indivíduos, instituições privadas e empresas e que entretanto, ao gerarem riscos, se tornaram alvo de debates públicos. A questão estará por isso em legitimar as decisões através do escrutínio público e da criação de um enquadramento legal e institucional – é esta a utopia de Beck de uma democracia técnica ou ecológica. Beck afirma que estamos, não numa pós-modernidade, mas numa modernidade radicalizada ou modernidade reflexiva. Significa isto que a modernidade sofre as consequências da sua expansão e da sua implementação. A resposta do autor não vai no sentido de destruir a modernidade (ela já é atacada pelo domínio das técnicas) mas no sentido de a tornar actual: “my notion of reflexive modernity implies that we do not have enough reason (Vernunft)”. Só um segundo Iluminismo poderá trazer um novo modelo interpretativo do mundo que simultaneamente dê uma nova esperança no futuro.
[1] Goethe, in Fausto, Segunda Parte, Grande Vestíbulo do Palácio
[2] […] the more we try to colonize the future, the more likely it is to spring surprises on us.
[3] The notion of risk society clarifies a world characterized by the loss of a clear distinction between nature and culture.
[4] É grande o debate – e o caso já referido de Nova Orleães demonstra-o – sobre se fenómenos como o dos tornados têm alguma relação com o aquecimento global.
[5] The private sphere’s creation of risks means that it can no longer be considered apolitical. Indeed, a whole arena of hybrid subpolitics emerges in the realms of investment decisions, product development, plant management and scientific research priorities.
2 comentários:
Por favor, poderia disponibilizar a indicação das editoras destas duas obras? Obrigada!
Olá Bianca,
ambos os livros li em inglês, de modo que posso apenas dizer-lhe as editoras anglo-saxónicas. A editora do livro de Beck é a Sage Publications; não sei se existe à venda em Portugal.
Quanto ao "Natural Capitalism", comprei-o na FNAC, é possível que ainda o tenham; a editora é a Back Bay Books/ Litlle, Brown and Company.
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