quinta-feira, 23 de agosto de 2007

A ética, o indivíduo e a empresa

- Afirmamos que são as pessoas que são éticas e, nesse sentido, as empresas ganham o seu carácter ético através das pessoas que as compõem e representam.
- Reconhecemos que a ética profissional é a mesma ética da vida privada. Não existem várias éticas na actuação de cada um de nós, mas apenas uma, que não depende de políticas, países ou momentos, mas é caminho para o fim último a que aspiramos para a nossa Vida e para a Humanidade.

Código de Ética dos Empresários e Gestores, ACEGE - Associação Cristã de Empresários e Gestores


Esta passagem, integrada no quarto princípio (Ética pessoal e profissional) do referido código de ética, constitui um dos maiores desafios da ética empresarial. De facto, as correntes de origem marxista atacam-na por considerarem-na um oxímoro, e as correntes de libertárias de direita atacam-na por considerarem que coloca pressões inaceitáveis sobre a empresa (e eventualmente uma pretensão moralista despida de sentido). O primeiro parágrafo desta passagem, ainda que não intencionalmente, não se limita a pôr em causa o conceito de ética empresarial. Ela põe em causa o conceito de empresa ou, mais propriamente, o conceito de organização. Já o segundo parágrafo apresenta-se bastante menos problemático, mas como decorrência da questão precedente (o conceito de organização) teremos também de frisar que há uma distinção a fazer entre a ética de cada indivíduo e a ética no contexto organizacional.
Há um questionamento que deve ser realizado antes de nos debruçamos sobre a perspectiva da ética poder aplicar-se a mais que aos indivíduos. Quantas pessoas não se sentiram já indignadas com a forma de funcionamento da organização na qual trabalham ou de uma organização com qual tenham entrado em contacto (por hipótese, como consumidoras)? E quantas não se aperceberam que esse mau funcionamento estava institucionalizado (e não era apenas resultado da má vontade de determinada chefia ou de determinado funcionário)? Mais importante ainda, ao mudar de local de trabalho, de organização, quantas pessoas não adaptam o seu comportamento ao meio envolvente?


As empresas são organizações (a menos que tenha apenas um trabalhador). Isto parece claro. Mas então, o que é uma organização? Podemos defini-la numa primeira fase como o somatório de múltiplos recursos – humanos, financeiros, objectos, maquinaria – que se articulam, se estruturam de uma forma peculiar com vista a atingir um fim comum. Entre esses recursos é óbvio que o determinante só pode ser o humano. Para que a organização tenha sentido e legitimidade, é necessário que esse fim seja inatingível ou dificilmente concretizável se apenas uma pessoa o tentasse atingir. De facto, uma pessoa sozinha poderia até conseguir fabricar um carro, mas seria isso razoável? Assim, numa segunda fase podemos definir a organização como uma soma maior que as partes, ou seja, os múltiplos elementos que compõem a organização têm, através da sua articulação, efeitos sinérgicos: a organização no seu todo consegue atingir melhor o fim a que se propõe que a soma dos indivíduos que a compõem se trabalhassem separadamente. Compreensivelmente, esta apresentação da organização como um todo maior que as partes levanta muitas justas preocupações a respeito da defesa do indivíduo e da sua liberdade. Mas, precisamente, muitos códigos éticos abrem um dilema com o conceito de ética, ao promoverem a sua juridificação (nomeadamente, a utilização dos códigos éticos como mais um instrumento de controlo sobre os trabalhadores, ao invés de os utilizarem como forma de controlo colectivo contra a propagação de uma cultura de desonestidade), conflito que em boa medida pode ser considerado uma decorrência deste conceito individualizador de ética empresarial.


Ora, se a empresa é uma organização, e se como organização é um todo maior que as partes nos resultados da sua acção (nos fins que se propõe alcançar), a pergunta emerge obrigatoriamente: não será a empresa também um todo maior que as partes no decurso da acção, ou seja, não serão os actos de cada indivíduo em contexto organizacional um misto das características do seu eu e das influências do nós? Esta questão – nós somos só nós ou somos nós e o nosso contexto – transcende a ética empresarial mas tem efeitos determinantes sobre ela. Defendo que a identidade individual é um compósito de múltiplos elementos. Por consequência, o indivíduo em contexto organizacional recebe da organização – da empresa – uma parcela da sua identidade. Não se trata de defender a identificação entre o indivíduo e a empresa – trata-se de assumir que, de forma positiva ou negativa, a empresa formata o indivíduo e os seus actos. Deveremos perguntar-nos: terá a empresa uma identidade? Se o negarmos, pomos em causa boa parte do que a teorização em torno da gestão de empresas defende. Mais ainda, pomos em causa a ética empresarial: como afirmar que uma empresa se guia por valores se ela não tem identidade? Será que algo que não tem existência própria – que é apenas a soma de múltiplos indivíduos, que não existe para além dos indivíduos concretos que a compõem – pode ter valores? Sem valores próprios, seremos forçados a afirmar que os valores que as empresas divulgam não são os seus valores, mas os valores dos indivíduos concretos que as lideram. Isso quererá então dizer que se porventura a empresa mudar de proprietários ou de gestores poderá mudar radicalmente de valores? O que todos os estudos sobre cultura organizacional afirmam é que a mudança cultural é a mais difícil, a mais profunda e a mais longa mudança que pode ocorrer numa empresa. A dimensão da organização influencia naturalmente o grau de dificuldade mas isso confirma apenas o que pretendemos demonstrar. Uma empresa pode mudar de código ético, pode mudar de dirigentes, pode fazer várias declarações de princípios, mas os hábitos permanecem e só paulatinamente vão sendo transformados. Contrariamente ao que várias utopias políticas pretendiam, em cultura não há revoluções: ela, mesmo mudando, é conservadora por natureza e só se altera por via reformista e compromissória.


O que isto denuncia é que as empresas superam os indivíduos que as compõem na medida em que, sendo por eles influenciadas, existem antes deles, formata cada um deles e após a sua saída outros indivíduos irão prosseguir o ciclo, influenciando e sendo influenciados pelos elementos formais e informais da empresa. As empresas têm por isso um carácter, um ethos, um conjunto de características que resultam da conjunção dos recursos tangíveis e intangíveis que a compõem. Quem tem um ethos tem uma capacidade para actuar moralmente.
Como decorrência da assunção de que a ética não é coisa apenas da acção individual, emerge a questão: nas empresas como em política, não somos responsáveis apenas perante nós próprios. As nossas acções têm inevitavelmente efeitos sobre outros, e se isso é verdade no contexto privado, é-o sobretudo em contexto social. O indivíduo, se agir em nome próprio, é livre de tomar as decisões consoante as suas próprias orientações morais. No entanto, se age em nome de outrem (pessoa ou grupo) ele é responsável perante aqueles em nome de quem está a agir. Por conseguinte, a ética profissional no contexto empresarial não é necessariamente coincidente com a privada. Desejavelmente não devem ser opostas – mas tampouco podem ser sobrepostas.

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