segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Ética aplicada enquanto direito social

Autor simultaneamente polémico e menosprezado, Georges Gurvitch desenvolveu o seu trabalho em torno da filosofia social, área onde confluem filosofia, sociologia e direito. Muitas vezes confundindo ou fundindo as suas perspectivas e desejos políticos com o trabalho académico, Gurvitch, influenciado pelo anarquismo, abandonou a URSS para viver em França e nos Estados Unidos. É da sua recusa tanto do individualismo como do estatismo que nasce a sua maior criação: a ideia de direito social. Define-o o autor como não estatal, frequentemente ignorado pelos juristas, sendo engendrado por cada Nós, cada grupo, cada classe, ora de forma espontânea, ora pelos precedentes, costumes, práticas etc. […].[1]


Um dos motivos pelos quais Gurvitch poderá não ter alcançado grande protagonismo na sociologia jurídica terá sido, para lá da complexidade e da não ortodoxia da sua abordagem e das suas teses, o seu desfasamento. De facto, num período (da década de 20 à década de 60) em que o Estado por todo o lado crescia inexoravelmente, não só nos regimes totalitaristas de direita e de esquerda como igualmente nas democracias ocidentais, o autor propõe uma concepção para-estatal de Direito. Tendo morrido a meio da década de 60, próximo portanto do nascimento das éticas aplicadas, a sua reflexão sobre o direito social poderá dar um contributo importante para a área, comportando este conceito três características primordiais: ele é colectivo, pacífico e múltiplo.

a) Colectivo, na medida em que é uma união intuitiva num Nós. O indivíduo não é a base da sociedade, mas sim as relações sociais, as formas de sociabilidade. As consciências individuais interpenetram-se e o controlo social não constitui um elemento nem uma relação exterior à sociedade. Pelo contrário, o controlo faz parte do funcionamento dos grupos e das sociedades, de forma imediata e não hierárquica. A política e o Estado são excluídos bem como o poder (enquanto capacidade de exercer violência).
b) Pacífico, dado que a experiência jurídica deverá ser uma experiência de colaboração; já as relações de mando e obediência serão perversões políticas do direito. O consenso não é nem criação nem produto do direito social, mas é este último que resulta do consenso. Como mecanismo de reconciliação e pacificação das relações sociais, o direito gurvitchiano exclui a luta de forças sociais antagónicas pelo poder.
c) Outra questão que tem elevada importância para a compreensão do conceito gurvitchiano de direito social é a ideia de multiplicidade, o pluralismo jurídico, produto dos corpos intermédios entre Estado e indivíduo capazes de produzir normas para uso próprio que, tendo força coactiva, serão jurídicas. Esta ideia de pluralismo jurídico, note-se, antes de ser tomada pelo libertarismo de esquerda, partiu das correntes conservadores e reaccionárias que recusavam o Estado moderno, acusado que era de ter nascido de abstracções racionalistas e não ter sido baseado na realidade social. É certo que dialecticamente a negação da negação nunca é igual à afirmação inicial (ou seja, esta negação do estatismo não terá correspondência imediata no esmagamento do indivíduo por força dos corpos sociais pré-modernos). No entanto, constitui um aviso importante para que se reafirmem os fins sobre os meios: de facto, se o objectivo for aumentar a liberdade humana, não podemos perder de vista o papel regulador do Estado na garantia do individualismo[2]. Assim, o pluralismo jurídico deverá ser visto como força potencialmente libertadora por via da autolegislação, da capacidade de cada sector da sociedade ser capaz de livremente se submeter a regras que respeitem pressupostos suportados por uma ética cívica. O objectivo não pode ser um refortalecimento do corporativismo nem a (re-)invenção de mais uma forma de exercer controlo sobre o indivíduo.


Gurvitch afirma o Estado como apenas um grupo particular, uma forma entre outras de expressão de solidariedade social, fundada neste caso no factor geográfico. Outras formas no entanto existem, como sejam a solidariedade económica, religiosa, cultural ou internacional. Pode desta forma emergir um sistema jurídico com pluralidade de direitos e sem que necessariamente haja um elemento centralizador e soberano. Há sem dúvida muitos elementos neste autor que podem dar um contributo valioso à reflexão e à prática das éticas aplicadas. De facto, este conceito de direito social consegue ser menos estatizante que algumas das abordagens que tem havido no âmbito das éticas aplicadas e simultaneamente menos opressor para os indivíduos[3]. O recurso à formalização da ética (com recurso a códigos éticos e deontológicos) e à sua juridificação constituem não só uma submissão da ética e da capacidade auto-reguladora a um caucionamento estatal como também são vistas positivamente por muitas empresas como mais uma forma de exercer controlo sobre os seus empregados.

[1] Georges Gurvitch citado por Robert Cramer, revista Droit et Societé 4-1986, pág. 458
[2] Rosanvallon considerava estatismo e individualismo como faces diferentes de uma mesma realidade e o Estado moderno como uma garantia da liberdade do indivíduo.
[3] Afirma Paul Mercier em A Ética nas Empresas, Edições Afrontamento, pág. 36, que “A ética formalizada constitui um meio jurídico de desresponsabilizar a empresa em caso de actuações ilegais de um seu empregado. Os Estados-Unidos procuram suprimir os comportamentos não éticos declarando-os fora de lei”.

1 comentário:

GMaciel disse...

Ética??
Está anoréctica, meu amigo, anoréctica da silva.
:(
:)
jocas grandes